terça-feira, 27 de novembro de 2018

África com kapa? (Mia Couto)




ÁFRICA COM KAPA?

– Escreve-se com kapa e dabliú?
O brasileiro não entendeu.
– Como?
O meu amigo sorriu benevolente. Puxou a barriga para cima do cinto e dispôs-se a ajudar o funcionário da migração a preencher nossos papéis de entrada. Pegou na caneta e escreveu o nome, recheado de “k”, “w” e “y”.
O anfitrião brasileiro franziu o sobreolho. Remirou as fichas e, certamente, ressentiu-se de o terem corrigido. Ele tinha escrito o nome do meu compatriota, empregando as normas ortográficas da língua portuguesa. Usou as letras “c”, “u” e “i” onde o meu amigo insistia em emendar para kapa, dabliú e ipslon.
– Não percebo por que escreve assim – teimou o funcionário.
Temi que o meu companheiro de viagem puxasse de resposta arrogante. Mas ele praticou a sua gorda paciência.
– Porque assim é que é a maneira africana de escrever.
E antes que o recepcionista retomasse o fôlego para mais pergunta, o moçambicano adiantou basta filosofia. Foi um discurso. Ali mesmo, entre malas e empurrões, pronunciou-se: era urgente romper com as imposições ortográficas da língua dos colonizadores. A revolução, exclamou ele, é para isso mesmo, para romper espartilhos. Uma dama que passava escutou a sentença e, desconfiada, apressou-se a sair dali. O meu compatriota continuava, inflamado.
– Temos que assumir as nossas raízes africanas, respeitar as nossas tradições.
Aqui o brasileiro conseguiu interromper.
– Será que os kapas são mais africanos que os cês?
Era uma pergunta, sim senhor. Afinal o brasileiro estava de espertezas. E discutiram-se os dois, divergentes. Eu não emiti opinião: não queria que se fizesse trivergência. Nem fica bem entrar num país com pé na controvérsia. Mas os dois prosseguiam a questão que se colocava. O brasileiro despachava argumento atrás de argumento. Dizia que, para ele, se tratava de pura transferência das normas do português para as do inglês.
– Você sai da sombra da mangueira para entrar na sombra do abacateiro, moço.
O moçambicano ficou embaraçado, descontou no discurso a demora de um raciocínio à altura. Mas não contra-atacou directo. Preferiu uma incursão no flanco do adversário.
– E sabe que mais, meu caro? Há muita revolução por aí que se distraiu na dignificação da personalidade.
O brasileiro solicitou explicação. Então o Gorbatchov ainda não tinha rompido com o alfabeto de S. Cirilo? E Fidel de Castro, tão consequente em tudo, mantinha-se agarrado a padrões instituídos pela monarquia espanhola? E ambos se alfabatiam.
Atrás de nós já uma considerável bicha de pessoas se impacientava. Alguns comentavam: parece que é gente ligada a esse negócio de Acordo Ortográfico. Uma voz se ergueu nervosa:
– E será que vão assinar o acordo aqui, no balcão do aeroporto?
Os dois contendedores resolveram adiar o despacho final da querela. O funcionário pegou então nos meus papéis e disse, levantando o rosto em desafio:
– Pronto, também emendo o seu. Mas é só por esta vez, viu?
E com gesto enérgico, riscou a ficha. No formulário, em letras garrafais, escreveu: MYA KOWTO.

Mia Couto


Cronicando. Caminho (1991)