segunda-feira, 2 de outubro de 2017

"Um dia não estarei. Custa..." (Egito Gongalves)




Um dia não estarei. Custa
escrever isto. A cidade ter-me-á
perdido, as coisas que chamei minhas
estarão dispersas,
algumas viverão ainda amadas
por quem amei. Penso nisso quando sei
que não subiria hoje as escadas
do Barredo. Nem sequer as da Vitória,
parando no patamar para um mergulho
na paisagem que o rio anima, o que
fiz tanta vez sem perder o fôlego.
Nem me proporia atravessar o Montemuro
para um cozido enxundioso na Gralheira.
Um dia não estarei. É o normal!
O meu lugar no café, o olhar
ausente da paisagem, deixarei
umas cartas, alguns inéditos
no Compaq (em tempos ficariam
na gaveta), coisas sem importancia
que só para mim a teriam. Estarei
em lugar nenhum, serei um retrato
na parede e não haverá lugar
para qualquer dor, ó Drummond!

Egito Gongalves


Poema inédito publicado na revista Hablar / Falar de POESIA. Revista hispano/portuguesa de poesía. Número 6. 2002.


José Egito de Oliveira Gonçalves (1920 - 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor português.

(Wikipédia)