sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Aqueles que andam por aí (António Lobo Antunes)


As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes as sinto à minha volta, não apenas a presença, o cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso

- Não fui eu quem disse isto

e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis

(invisíveis?)

densas de humanidade, tão próximas. Umas alturas muitas, outras uma ou duas apenas por terem que fazer noutro lado, no caso de saírem não vale a pena preocuparmo-nos: têm a chave e a prova que têm a chave está em que entram, silenciosas, amigas, penduram os casacos no bengaleiro, sorriem. Onde se encontra o pai? Na cadeira do costume. Onde se encontra a avó? Lá fora, no quintal, a alinhar a roupa no frio, ou a fazer festas à cadela com a mão leve de sempre. Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Para quê visitar ausências? Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto. Segredam-nos

- Não faleci, sabes?

e não faleceram, é verdade, continuam, não na nossa lembrança, continuam de facto, pertinho. Quase sem ruído mas, tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixámos de estar juntos. Nunca deixámos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. Na época em que andei muito doente houve sempre palmas no meu ombro, a ajudarem. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem. O meu avô

- Não te aborrece escrever?

ele, a quem nunca vi ler um livro, instalava-se diante dos canteiros, em silêncio, a olhar as árvores, suponho que a olhar o Brasil da sua infância. Avôzinho. Tão diferente de mim: muito moreno, de cabelo encaracolado, lindo. Continua por aí, não deixe de continuar por aí. Um amigo meu, que disse a missa de corpo presente da mãe, contou-me que, ao voltar a casa semanas depois, a primeira pergunta que fez foi

- A mãe?

seguro de a achar num compartimento qualquer. E, de certeza

(isto já não me contou)

que deu com ela. Que dá com ela a cada passo. Nem é preciso interrogar seja quem for, a mãe encarrega-se de resolver o problema, haverá algum problema que uma mãe não resolva? Não é infantilidade da minha parte afirmar isto: é assim. Frase da minha, ontem

- A gente tem que se divertir ao divertir as crianças, porque se a gente não se divertir elas não se divertem

e eu de boca aberta. É que não há coisa mais séria que o divertimento. Os nossos brinquedos foram uma coisa importantíssima para o meu pai. Confiscava-nos alguns para seu gozo pessoal, secreto. A gravidade apaixonada com que ele jogava. Tenho os postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, derramados de ternura para um garotinho de dois anos. O paizinho gostava que o Janjão, etc. Andam os dois por aí agora, o Janjão e o paizinho. E, se calhar, o Janjão continua a receber postais. E de certeza que o Janjão continua a receber postais. É verdade não é, senhor, que continua a receber postais? Mesmo de bata, no hospital, mesmo professor, mesmo importante? Postais. Há quanto tempo não recebo postais. Uma carta de vez em quando, papelada da agência, das editoras, dos tradutores mas postais, postais-postais, népia. E aqueles que andam por aí, sei lá porquê, não me mandam nenhum. Ou mandam-se a si mesmas e acham que chega. E, em certo sentido, chega. Mas umas palavrinhas, num cartão, caíam bem, há alturas em que umas palavrinhas num cartão caem bem. Não sei porquê mas caem bem. Não faço nenhum livro agora, ando vazio, e o vazio começa a inquietar-me. E se isto acabou? Terei secado? Apareceu-me uma coisa mas não dava, de maneira que fiquei sem nada. As falsas partidas, os equívocos, pensar que se consegue e não se consegue. O que julgarão desta impotência aqueles que andam por aí? Não lhes falo nisso, claro, é o género de assuntos que guardo para mim, guardo quase tudo para mim. A casa frente ao mar que nunca tive, por exemplo, tenho prédios feios. Algumas árvores e prédios feios. Que silêncio. A minha filha, no computador, entretem-se com o que chama um jogo de estratégia, em lugar de se sentar no meu colo. Olho para o écran e não percebo raspas, deve ser uma estratégia complicadíssima. Afirma que está a construir coisas. Ao menos que haja alguém ao pé de mim a construir seja o que for, compenetrada, solene. Se olhar bem o seu ombro vejo a palma que poisou nela. Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. Basta um bocadinho de atenção para a ouvir cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.

António Lobo Antunes

Revista Visão – 26-1-2012