A HONRA PERDIDA DE SEBASTIÃO
Salazar não gostava de nós. Porque não se aprecia aquilo que não se conhece. E, nos seus 81 anos de vida, o velho conheceu apenas a pequena aldeia do Vimieiro, o seminário de Viseu, algumas ruelas de Coimbra e as paredes da sua reclusão, por detrás da assembleia amestrada. Nunca foi visto a subir o Chiado, descer a Rua do Ouro, sentar-se num café ou ohar o Tejo.
Salazar realmente não gostava de Portugal. E detestava particularmente os madeirenses. Não fosse ter privado em Coimbra com o futuro governador João Abel; com os eternos deputados manos Araújo; não fosse aquele general (ou cabo) da Calheta, José Vicente de Freitas, que o desencantou para o governo em 1928, Salazar julgar-nos-ia aborígenes africanos.
Brancos, sim, mas de alma negra, teria cogitado ao constatar o zero em comportamento dos ilhéus. Selvagens, em motins permanentes. Era a revolta da farinha em 31, as escaramuças do açúcar em 34, a revolução do leite em 36, embrião de um levantamento nacional contra a ditadura. Repressão difícil. Navios de guerra, forcas expedicionárias, oito mortos, centenas de presos e dezenas de deportados para África.
Salazar nao gostava dos madeirenses. Cobrou-nos, durante 30 anos, um imposto de guerra sobre todas as importações e exportações, E, suprema humilhação, mandou exarar nos códigos administrativos que, na Madeira, não podiam existir juntas de freguesia, por falta de civismo dos seus habitantes.
Reconheco a nossa ingratidão. Incapazes de perceber que, na sua infinita sabedoria, mesmo quando nos castigava, o velho só desejava o nosso bem. Quando instaurou o monopólio das farinhas; quando criou a Junta de Lacticínios (latrocínios, dizia o reviralho); quando concedeu o monopólio da cana sacarina a uma fábrica inglesa que laborava tres meses por ano. À forca de leis, castigos e multas, Salazar pretendia criar grupos financeiros e industriais. Determinou: toda a cana-de-açúcar seria vendida ao Hinton. Toda a produção da fábrica Hinton seria consumida localmente. Proibiu o açúcar importado - mais barato que o da Hinton. Proibiu a importação de bagacos e aguardentes continentais. Durante 30 anos andaram guardas fiscais a medir plantios de cana e revistar bagagens de quem desembarcava, à cata de alguma garrafita clandestina. Tudo para nosso bem. E nós sem percebermos.
Porém, onde há proibição, há tentação. Tipificada como crime. Foi a lei seca na América. Foi, salvo as devidas proporções, a casa do herói desta crónica. Permitam-me que o apresente: Sebastião, 50 anos, casado, pai de filhos. Comerciante na Calheta. Homem de haveres, a custa de uma venda com tasca anexa, aviando copos de jaqué, americano, ponchas e cirroses em barda. Esta é a versão oficial. Porque Sebastião adquiriu fama e proveito durante a guerra no negócio de linhas. Vivaço, calculou penúria. E açambarcou o impensável: carrinhos e novelos de linhas as toneladas. Quando apertou a guerra, navios ao fundo, corte nos abastecimentos, houve faltas. E digam-me: pode-se bordar sem linhas? Fazer calças? Remendar roupas? Sebastião, rico, estava nas sete quintas, a gozar quem o chamara maluco. Mas é possível um flibusteiro reformar-se? Afastar o cheiro da pólvora? A emoção do risco? Daí, acabada a guerra, lançar-se Sebastião no fabrico e venda do bagaço. Até ser apanhado. E multado em 50 contos, por posse e utilização indevida de alambique, um dinheirame na época. Sebastião das linhas bem pensou no seu padrinho José Vicente de Freitas, mas nesse ano de 53 já o cabo (ou sargento?) de guerra fazia tijolo. E é altura de introduzir o dr. Alexandrino. Causídico bem falante, estabelecido na Rua das Queimadas de Cima, desta cidade do Funchal. Que prometeu facilidades, estorno da multa e isenção nas custas.
Dito e acontecido. Com copiosa argumentação, baratinou os guardas autuantes, provando, se não a inocencia do multado, pelo menos a carência de provas. Poderia o alambique ter outro proprietário? Instalado em terras de Sebastião, é certo, mas sem conhecimento do dono?
Vencida a acção, continuou Sebastião chateado. Que gastara mais de 20 contos em preparos, retendo dr. Alexandrino a devolução da multa, à conta de honorários. "Processo difícil, sabe?" Aí, Sebastião desabafou. Mais valia não ter ido para tribunal. Sempre perdia menos 20 contitos. Foi a vez de Alexandrino trovejar. Cresceu, levantou a voz e indignou-se:
"Então rapaz, a tua honra? Acaso tem ela preço?"
E Sebastião afastou-se derrotado.
"Aquele gajo comeu-me as papas na cabeça ... Só por falar bem e conhecer leis (...) Filho meu há-de ir para Coimbra, estudar para Salazar ... "
E assim aconteceu. Sebastião já morreu. Resta-lhe uma sementeira de filhos e netos, todos doutores instalados em todos os partidos, para qualquer governo, em qualquer estação.
Ricardo França Jardim
(Público Magazine, Domingo, 14 Abril 1996)
Salazar não gostava de nós. Porque não se aprecia aquilo que não se conhece. E, nos seus 81 anos de vida, o velho conheceu apenas a pequena aldeia do Vimieiro, o seminário de Viseu, algumas ruelas de Coimbra e as paredes da sua reclusão, por detrás da assembleia amestrada. Nunca foi visto a subir o Chiado, descer a Rua do Ouro, sentar-se num café ou ohar o Tejo.
Salazar realmente não gostava de Portugal. E detestava particularmente os madeirenses. Não fosse ter privado em Coimbra com o futuro governador João Abel; com os eternos deputados manos Araújo; não fosse aquele general (ou cabo) da Calheta, José Vicente de Freitas, que o desencantou para o governo em 1928, Salazar julgar-nos-ia aborígenes africanos.
Brancos, sim, mas de alma negra, teria cogitado ao constatar o zero em comportamento dos ilhéus. Selvagens, em motins permanentes. Era a revolta da farinha em 31, as escaramuças do açúcar em 34, a revolução do leite em 36, embrião de um levantamento nacional contra a ditadura. Repressão difícil. Navios de guerra, forcas expedicionárias, oito mortos, centenas de presos e dezenas de deportados para África.
Salazar nao gostava dos madeirenses. Cobrou-nos, durante 30 anos, um imposto de guerra sobre todas as importações e exportações, E, suprema humilhação, mandou exarar nos códigos administrativos que, na Madeira, não podiam existir juntas de freguesia, por falta de civismo dos seus habitantes.
Reconheco a nossa ingratidão. Incapazes de perceber que, na sua infinita sabedoria, mesmo quando nos castigava, o velho só desejava o nosso bem. Quando instaurou o monopólio das farinhas; quando criou a Junta de Lacticínios (latrocínios, dizia o reviralho); quando concedeu o monopólio da cana sacarina a uma fábrica inglesa que laborava tres meses por ano. À forca de leis, castigos e multas, Salazar pretendia criar grupos financeiros e industriais. Determinou: toda a cana-de-açúcar seria vendida ao Hinton. Toda a produção da fábrica Hinton seria consumida localmente. Proibiu o açúcar importado - mais barato que o da Hinton. Proibiu a importação de bagacos e aguardentes continentais. Durante 30 anos andaram guardas fiscais a medir plantios de cana e revistar bagagens de quem desembarcava, à cata de alguma garrafita clandestina. Tudo para nosso bem. E nós sem percebermos.
Porém, onde há proibição, há tentação. Tipificada como crime. Foi a lei seca na América. Foi, salvo as devidas proporções, a casa do herói desta crónica. Permitam-me que o apresente: Sebastião, 50 anos, casado, pai de filhos. Comerciante na Calheta. Homem de haveres, a custa de uma venda com tasca anexa, aviando copos de jaqué, americano, ponchas e cirroses em barda. Esta é a versão oficial. Porque Sebastião adquiriu fama e proveito durante a guerra no negócio de linhas. Vivaço, calculou penúria. E açambarcou o impensável: carrinhos e novelos de linhas as toneladas. Quando apertou a guerra, navios ao fundo, corte nos abastecimentos, houve faltas. E digam-me: pode-se bordar sem linhas? Fazer calças? Remendar roupas? Sebastião, rico, estava nas sete quintas, a gozar quem o chamara maluco. Mas é possível um flibusteiro reformar-se? Afastar o cheiro da pólvora? A emoção do risco? Daí, acabada a guerra, lançar-se Sebastião no fabrico e venda do bagaço. Até ser apanhado. E multado em 50 contos, por posse e utilização indevida de alambique, um dinheirame na época. Sebastião das linhas bem pensou no seu padrinho José Vicente de Freitas, mas nesse ano de 53 já o cabo (ou sargento?) de guerra fazia tijolo. E é altura de introduzir o dr. Alexandrino. Causídico bem falante, estabelecido na Rua das Queimadas de Cima, desta cidade do Funchal. Que prometeu facilidades, estorno da multa e isenção nas custas.
Dito e acontecido. Com copiosa argumentação, baratinou os guardas autuantes, provando, se não a inocencia do multado, pelo menos a carência de provas. Poderia o alambique ter outro proprietário? Instalado em terras de Sebastião, é certo, mas sem conhecimento do dono?
Vencida a acção, continuou Sebastião chateado. Que gastara mais de 20 contos em preparos, retendo dr. Alexandrino a devolução da multa, à conta de honorários. "Processo difícil, sabe?" Aí, Sebastião desabafou. Mais valia não ter ido para tribunal. Sempre perdia menos 20 contitos. Foi a vez de Alexandrino trovejar. Cresceu, levantou a voz e indignou-se:
"Então rapaz, a tua honra? Acaso tem ela preço?"
E Sebastião afastou-se derrotado.
"Aquele gajo comeu-me as papas na cabeça ... Só por falar bem e conhecer leis (...) Filho meu há-de ir para Coimbra, estudar para Salazar ... "
E assim aconteceu. Sebastião já morreu. Resta-lhe uma sementeira de filhos e netos, todos doutores instalados em todos os partidos, para qualquer governo, em qualquer estação.
Ricardo França Jardim
(Público Magazine, Domingo, 14 Abril 1996)