segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A honra perdida de Sebastião (Ricardo França Jardim)




A HONRA PERDIDA DE SEBASTIÃO

Salazar não gostava de nós. Porque não se aprecia aquilo que não se conhece. E, nos seus 81 anos de vida, o velho conheceu apenas a pequena aldeia do Vimieiro, o seminário de Viseu, algumas ruelas de Coimbra e as paredes da sua reclusão, por detrás da assembleia amestrada. Nunca foi visto a subir o Chiado, descer a Rua do Ouro, sentar-se num café ou ohar o Tejo.

Salazar realmente não gostava de Portugal. E detestava particularmente os madeirenses. Não fosse ter privado em Coimbra com o futuro governador João Abel; com os eternos deputados manos Araújo; não fosse aquele general (ou cabo) da Calheta, José Vicente de Freitas, que o desencantou para o governo em 1928, Salazar julgar-nos-ia aborígenes africanos.

Brancos, sim, mas de alma negra, teria cogitado ao constatar o zero em comportamento dos ilhéus. Selvagens, em motins permanentes. Era a revolta da farinha em 31, as escaramuças do açúcar em 34, a revolução do leite em 36, embrião de um levantamento nacional contra a ditadura. Repressão difícil. Navios de guerra, forcas expedicionárias, oito mortos, centenas de presos e dezenas de deportados para África.

Salazar nao gostava dos madeirenses. Cobrou-nos, durante 30 anos, um imposto de guerra sobre todas as importações e exportações, E, suprema humilhação, mandou exarar nos códigos administrativos que, na Madeira, não podiam existir juntas de freguesia, por falta de civismo dos seus habitantes.

Reconheco a nossa ingratidão. Incapazes de perceber que, na sua infinita sabedoria, mesmo quando nos castigava, o velho só desejava o nosso bem. Quando instaurou o monopólio das farinhas; quando criou a Junta de Lacticínios (latrocínios, dizia o reviralho); quando concedeu o monopólio da cana sacarina a uma fábrica inglesa que laborava tres meses por ano. À forca de leis, castigos e multas, Salazar pretendia criar grupos financeiros e industriais. Determinou: toda a cana-de-açúcar seria vendida ao Hinton. Toda a produção da fábrica Hinton seria consumida localmente. Proibiu o açúcar importado - mais barato que o da Hinton. Proibiu a importação de bagacos e aguardentes continentais. Durante 30 anos andaram guardas fiscais a medir plantios de cana e revistar bagagens de quem desembarcava, à cata de alguma garrafita clandestina. Tudo para nosso bem. E nós sem percebermos.

Porém, onde há proibição, há tentação. Tipificada como crime. Foi a lei seca na América. Foi, salvo as devidas proporções, a casa do herói desta crónica. Permitam-me que o apresente: Sebastião, 50 anos, casado, pai de filhos. Comerciante na Calheta. Homem de haveres, a custa de uma venda com tasca anexa, aviando copos de jaqué, americano, ponchas e cirroses em barda. Esta é a versão oficial. Porque Sebastião adquiriu fama e proveito durante a guerra no negócio de linhas. Vivaço, calculou penúria. E açambarcou o impensável: carrinhos e novelos de linhas as toneladas. Quando apertou a guerra, navios ao fundo, corte nos abastecimentos, houve faltas. E digam-me: pode-se bordar sem linhas? Fazer calças? Remendar roupas? Sebastião, rico, estava nas sete quintas, a gozar quem o chamara maluco. Mas é possível um flibusteiro reformar-se? Afastar o cheiro da pólvora? A emoção do risco? Daí, acabada a guerra, lançar-se Sebastião no fabrico e venda do bagaço. Até ser apanhado. E multado em 50 contos, por posse e utilização indevida de alambique, um dinheirame na época. Sebastião das linhas bem pensou no seu padrinho José Vicente de Freitas, mas nesse ano de 53 já o cabo (ou sargento?) de guerra fazia tijolo. E é altura de introduzir o dr. Alexandrino. Causídico bem falante, estabelecido na Rua das Queimadas de Cima, desta cidade do Funchal. Que prometeu facilidades, estorno da multa e isenção nas custas.

Dito e acontecido. Com copiosa argumentação, baratinou os guardas autuantes, provando, se não a inocencia do multado, pelo menos a carência de provas. Poderia o alambique ter outro proprietário? Instalado em terras de Sebastião, é certo, mas sem conhecimento do dono?

Vencida a acção, continuou Sebastião chateado. Que gastara mais de 20 contos em preparos, retendo dr. Alexandrino a devolução da multa, à conta de honorários. "Processo difícil, sabe?" Aí, Sebastião desabafou. Mais valia não ter ido para tribunal. Sempre perdia menos 20 contitos. Foi a vez de Alexandrino trovejar. Cresceu, levantou a voz e indignou-se:

"Então rapaz, a tua honra? Acaso tem ela preço?"

E Sebastião afastou-se derrotado.

"Aquele gajo comeu-me as papas na cabeça ... Só por falar bem e conhecer leis (...) Filho meu há-de ir para Coimbra, estudar para Salazar ... "

E assim aconteceu. Sebastião já morreu. Resta-lhe uma sementeira de filhos e netos, todos doutores instalados em todos os partidos, para qualquer governo, em qualquer estação.

Ricardo França Jardim


(Público Magazine, Domingo, 14 Abril 1996)