segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A rosa mística (Adélia Prado)

Fotografia de Juliana Lucas


A ROSA MÍSTICA

A primeira vez
que tive a consciência de uma forma,
disse à minha mãe:
dona Armanda tem na cozinha dela uma cesta
onde põe os tomates e as cebolas;
começando a inquietar-me pelo medo
do que era bonito desmanchar-se,
até que um dia escrevi:
”neste quarto meu pai morreu,
aqui deu corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte”.
Entendi que as palavras
daquele modo agrupadas
dispensavam as coisas sobre as quais versavam,
meu próprio pai voltava, indestrutível.
Como se alguém pintasse
a cesta de dona Armanda
me dizendo em seguida:
agora podes comer as frutas.
Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?
E por que contristava a alma
sendo ela própria alegria
e diversa da luz do dia,
banhava-se em outra luz?
Era forçoso garantir o mundo,
da corrosão do tempo, o próprio tempo burlar.
Então prossegui: “neste quarto meu pai morreu.
Podes fechar-te, ó noite,
teu negrume não vela esta lembrança”.
Foi o primeiro poema que escrevi.


Adélia Prado