S. Paulo de Loanda, século XIX
Nação Crioula conta a história de um amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlos Fradique Mendes – cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu – e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, tendo nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola. Nos fins do século XIX, em Luanda, Lisboa, Paris e Rio de Janeiro, misturam-se personalidades históricas do movimento abolicionista, escravo e escravocratas, lutadores de capoeira, pistoleiros a soldo, demiurgos, numa luta mortal por um mundo novo.
Minha querida madrinha,
Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e húmido, logo ali me assaltou o sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África.
Olhando a cidade que se erguia fatigada à minha frente pensei que não devia ter trazido o Smith. Vi-o desembarcar, tentando manter o aprumo de Escocês antigo enquanto cavalgava os dois negros, a perna direita no ombro esquerdo de um deles, a perna esquerda no ombro direito de outro. Chegou junto a mim lívido, descomposto pediu perdão e vomitou. Disse-lhe: «Bem-vindo a Portugal!»
À nossa volta ia um tumulto de gente, rindo e gritando, movendo fardos, arrastando animais. Smith conseguiu ao fim de algum tempo contratar os serviços de duas machilas e lá seguimos, suados e salgados, através de uma sucessão de ruas tortas e mal empedradas. Grupos de nativos conversavam à sombra dos muros ou dormiam estendidos de bruços na poeira. À porta do Hotel Glória esperava-nos a figura extraordinária de um homem em evidente evolução para ave. Um velho alto, leve, rosto estreito, nariz adunco e olhos redondos e brilhantes.
– Excelência! – gritou estendendo a mão. – Sou o coronel Arcénio de Carpo.
Eu sabia quem ele era. Un cientista austríaco, meu amigo, que durante varios meses estudou os sertões de Angola a fauna e a flora tinha-me falado dele com entusiasmo: «Em Luanda até o sol lhe obedece. Quase nada sucede na cidade sem a concordância do velho.» A patente de coronel que tão orgulhosamente ostenta – coronel comandante das províncias de Bié, Bailundo e Embo (!) – não tem no entanto significado algum para além do honorífico, já que Arcénio de Carpo não é militar, nunca visitou nenhuma destas províncias, que aliás não prestam vasslagem ao governo português, e em nenhuma delas existe sequer um corpo de soldados.
(...)
Fradique