segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Amor escreve-se com água (Mário-Henrique Leiria)



AMOR ESCREVE-SE COM ÁGUA

Querida

Acabo de receber a carta que me enviaste pelo cabo submarino. Vinha um pouco húmida, mas dada a enorme distância líquida que nos separa, é perfeitamente compreensível.

Senti-me contente por te saber bem, assim como os pequenos, nessa calma profunda e silenciosa de que já tanta saudade tenho.

O nosso trabalho, aqui, vai prosseguindo, lento mas eficaz. As falésias do litoral estão já suficientemente corroídas pelo nosso labor persistente, para permitir que as brigadas de chernes escavadores recentemente chegadas dos mares do Sul comecem a actuar em profundidade.

Também a infiltração e demolição nos rios se tem feito como convém, obedecendo com rigor ao plano estabelecido, tudo na maior ordem e sigilo, graças às informações de uma exactidão realmente admirável que os salmões exploradores nos têm fornecido.

Creio que esta parte do continente em breve começará a oscilar, a desaparecer nas águas, o que marcará o verdadeiro início do Grande Salto para o Fundo.

Segundo informações concretas que aqui obtive, fiquei a saber que as Brigadas de Choque dos tubarões-martelo estão já a concentrar-se nas zonas previstas. Isto, por enquanto, é segredo rigoroso como calculas, claro.

Compreenderás, querida, quanto me custa o estar tanto tempo separado de ti e dos pequenos mas, quando todos nós sabemos que este esforço culminará na aparição de um mundo melhor em que as águas serão realmente limpas e seguras, a separação torna-se mais suave.

Lembras-te da grande baleia branca que às vezes avistávamos aquando das férias que costumávamos fazer no Norte e a quem os pequenos chamavam de tia Josefa? Pois trabalha agora connosco; dirige as equipas de ataque com icebergs, calcula tu!

Apenas temos de lamentar certos golfinhos que se tornaram colaboracionistas, o que nos obrigou a expulsá-los. Felizmente são apenas casos esporádicos, talvez até recuperáveis.

Como vês, estamos realmente trabalhando para um futuro em que os novos de todos os mares possam vir a ter uma vida livre e digna.

Querida, despeço-me de ti com saudade mas, também, com orgulho. Diz aos pequenos que o pai os recorda constantemente. Tem cuidado com o Chuxo, ultimamente andava com as guelras inflamadas. Não lhe dês algas poluídas, é um perigo, bem sabes.

Águas transparentes para ti, meu amor

do teu
Estêvão


Mário-Henrique Leiria, Novos Contos do Gin, Lisboa, Estampa, 1974

Marío-Henrique Leiria (1923-1980) foi um autor surrealista português.