quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Cântico Negro (José Regio)

José Régio

O poema "Cântico Negro", do livro Poemas de Deus e do Diabo (1925), obra de José Régio, é uma obra-prima da literatura portuguesa.


CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!



José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista Presença, e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — Poemas de Deus e do Diabo (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.




O poema na voz do autor




terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Ensinamento (Adélia Prado)



ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Adélia Prado


Adélia Prado (Divinópolis, Minas Gerais, 1935) no Projeto Releituras.


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

As margens da alegria (João Guimarães Rosa)



ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se –certo como o ato de respirar–o de fugir para o espaço em branco. O Menino.

E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solícito de bem-humorado, o Tio ensinava-lhe como era reclinável o assento–bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o móvel mundo. Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois–assim insetos? Voavam supremamente. O Menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso. Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a Tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem. Chegavam.

João Guimarães Rosa


Início de "As margens da alegria", incluído no seu livro Primeiras Estórias (1962). Nesta estória um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).

João Guimarães Rosa (Cordisburgo,  Minas Gerais, 1908 - Rio de Janeiro, 1967), foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata.

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Um adeus português (Alexandre O'Neill)

Alexandre O'Neill


UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill


No Reino da Dinamarca (1958)




quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Inquérito sobre a imagem de Portugal


Conjuntura: Portugueses com imagem muito negativa de Portugal - inquérito Marktest

Lisboa, 14 dez (lusa) -- Os portugueses têm uma imagem muito negativa do seu país, segundo um inquérito ao estado da Nação hoje divulgado, que destaca a corrupção, a justiça e a economia nacional como os indicadores com avaliação mais negativa.

Lusa - Esta notícia foi escrita nos termos do Acordo Ortográfico

11:47 Terça feira, 14 de Dez de 2010


Lisboa, 14 dez (lusa) -- Os portugueses têm uma imagem muito negativa do seu país, segundo um inquérito ao estado da Nação hoje divulgado, que destaca a corrupção, a justiça e a economia nacional como os indicadores com avaliação mais negativa.

Das 2400 entrevistas, efetuadas pela empresa de estudos de mercado Marktest, resultou uma nota média de 7,2, numa escala de 20, a 14 temas: saúde, justiça, segurança, democracia, conflitualidade, economia nacional, corrupção, economia pessoal e familiar, jornalismo, imigração, qualidade de vida, imagem de Portugal, meio ambiente e educação.

"A corrupção, a justiça e a economia nacional foram os três indicadores que receberam uma avaliação mais negativa. O primeiro indicador com 2,6 e os outros com 3,3. Este valor resulta do facto de 47,6 por cento dos inquiridos considerarem que o atual estado da corrupção é mau e 37,5 por cento que é muito mau", conclui aquele estudo, segundo uma nota hoje distribuída pela empresa de estudos de mercado.

(Revista Visão)


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Das palavras (Eduardo White)



DAS PALAVRAS

Não mordas assim as palavras para que não te surpreendas, não as decepes. Não deixes a espada vil da mentira roubar-lhes a alegria. Quando as disseres aperta-as contra o peito. Faz um esforço por senti-las. Nas palavras cabem sempre o que para isso for preciso. Entra dentro delas como um milagre, como se uma pedra, de repente, se tornasse numa cigarra, como se o mar inteiro não te afogasse. Não as fites para as afastar. Não as rejeites. Pensa-as muitas vezes. As palavras não podem acordar com essa intenção de magoar. Distingue-as, toca nelas lentamente. Deixa que sejam limpas, que tenham chão, que façam vento. Dá-lhes a frescura de um limão, o êxtase que nelas se pode demorar. Não as digas, beija-as. As palavras povoam o que tu não podes povoar.

Ama as palavras, a possibilidade que são de poderes sonhar. Diz: Lua, grave, animal, gravura, diz verbo, teia, largura, diz pedra, luz água, jardim, planeta, unha, diz as palavras límpidas e transparentes, como amarelo, tremor, invenção, como clarão, erva, ou pão e verás como as palavras são fábulas, enredos, e as forças da língua em que vives e do chão de onde as dizes.

Eduardo White


Eduardo White é um poeta moçambicano. Nasceu em Quelimane em 1963.




terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Quer saber porque acabaram os bonecos do Contra-Informação?



Quer saber porque acabaram os bonecos do Contra-Informação?

O melhor programa de sátira e humor da história da nossa televisão chegou ao fim. A crise e os cortes orçamentais dizem uns. Um programa incómodo para o established, sem dúvida. Mas a razão só pode ser uma. Saiba qual.


Acabar com um programa como o Contra-Informação nunca poderia passar por um motivo de contenção ou corte orçamental. Isto porque não consigo admitir que numa estação pública se pague vinte mil euros por mês a alguns apresentadores de concursos para dizerem baboseiras e depois se alegue que não há dinheiro para manter um programa que presta um verdadeiro serviço público, há anos a fio, mantendo sempre níveis de qualidade irrepreensíveis. Ou a RTP acha que serviço público passa pelos telespectadores saberem que A e B já foram muitos felizes atrás de uma moita na praia de Mira? Não me parece.

Outro motivo poderia ser a alergia que um programa deste género causa. Terrivelmente assertivo, com uma capacidade de satirizar inteligentemente a actualidade como nenhum outro, tornando-se cada vez mais incómodo para uma sociedade e actual classe política que já deu mostras de ter pouco poder de encaixe. O grau de desenvolvimento de um país também pode ser medido pela capacidade que este tem ou não de se rir de si próprio, e pela liberdade que quem cria ou humoriza tem de o poder fazer livremente e sem espartilhos. E nesse aspecto estamos a anos-luz de muitos outros países. Temos muito que aprender. Basta pensarmos no humor Inglês.

Somo o país dos Malucos do riso, Maré Alta e outros "fenómenos" do género, programas "fáceis" que conquistam com facilidade audiências. Mas mesmo este espartilho mental não parece ter sido a causa. Até porque o Contra-Informação, quando passado em horário decente (coisa que já não acontecia), sempre foi bem recebido pelo público.

Por tudo isto o único motivo plausível para se acabar com um programa como a Contra-Informação apenas poderá ser o de os bonecos terem sido ultrapassados pelos personagens reais que caricaturavam. Ou seja, isto está de tal forma de pernas para o ar que começámos a não perceber quem na verdade é o boneco. Se o próprio boneco ou a figura real. Quando a realidade é mais caricata e divertida que o humor que a recria e procura satirizar, a essência de um programa deste género morre. Exemplo: há muito que José Sócrates fez "José Trocas-te" perder a piada. Isto porque o original faz rir muito mais do que o boneco. Até admira o boneco não ter pedido a demissão à Produtora Mandala por se sentir ultrapassado e se estar com uma depressão profunda. Mas há mais: Madaíl, Queiroz e tantos, tantos outros...

Se olharmos para tudo o que se tem passado nos últimos tempos verificamos que vivemos num país de figurinhas, fantoches, bonequinhos e muitas personagens verdadeiramente hilariantes, difíceis por isso de recriar com mais humor do que o seu natural, o que as próprias emanam. A nossa realidade é cada vez mais um episódio do contra-informação. O noticiário das 20:00 suplanta qualquer programa de humor negro. Os bonecos ganharam vida própria. Ou o contrário.

PS: parabéns a toda equipa do Contra, à produtora e aos argumentistas pelos excelentes momentos televisivos que proporcionaram. Catorze anos, 170 bonecos. Um grande programa.

Tiago Mesquita

(Expresso, 13-Dezembro-2010)


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O livro único (João Manuel Mimoso)



O LIVRO ÚNICO

Naquela manhã de Outubro de 1958 vi-me pela primeira vez como um anónimo na multidão. Daí nasceu a minha aversão (que ainda hoje mantenho) por todas as actividades de grupo.

Na parede o Presidente Salazar e o General Craveiro Lopes olhavam benignamente a sala. Quando a professora entrou, dois alunos repetentes (conheciam-se pelo facto de terem o dobro da nossa altura) levantaram-se e esticaram o braço direito. Confusos, todos os imitámos...

Do meu primeiro dia na Escola Oficial 78 guardo uma lembrança de paredes brancas e frases exemplificando consoantes e ditongos: “ao, ão, a tua mão, tanta mão, tanta mão” (ilustrado por meninos da Mocidade com o braço estendido); “L, l, lálarilálá, alto, altar, Lusitos! Viva Salazar! Viva Salazar!” (crianças cantando); F, f, os gatitos estão zangados e fazem f... f... f... f...” (gatos assanhados )...

Na página 55 (atingida por altura do Natal) começavam os textos. Um dos meus preferidos é “Quando eu for grande ” (pg. 84): “... O Carlos: Eu queria ser padre, ter uma igreja, um altar, dizer missa e pregar sermões. E eu, disse a Clarinha, gostava de ser missionária, ir para muito longe ensinar doutrina aos pretinhos. Pois eu, gritou a Filomena batendo palmas, quero ser dona de casa como a nossa mãe!”.

O último texto era o “Milagre das Rosas” e (inevitavelmente) havia que fazer uma redacção sobre o assunto. A minha preferida é a de um garoto que explicou: “A rainha levantou a saia e mostrou tudo. O rei disse: Senhora, nunca tal vi. O povo gritou em coro: Milagre, milagre!” (Não sei que nota teve).

Ao fim da tarde fazia os exercícios de cópia e de caligrafia (com caneta de tinteiro) sentado na mesinha ao canto da sala do velho 4º andar da Rua do Ouro. Só interrompia o trabalho quando os eléctricos para a Estrela desciam a rua com um tramm-tramm irritante. Há uns dias voltei à casa da Rua do Ouro e (chamem-lhe criancice ) sentei-me na sala a rever o livro por onde aprendi a ler. Gostava que a minha mesinha ainda existisse ao canto e que os eléctricos ainda partissem do Rossio – o seu tramm-tramm teria sido música para mim.

 João Manuel Mimoso

Lido na revista Kapa (anos noventa)



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Quando era criança (Fernando Pessoa)

O menino Fernando Pessoa

Quando era criança...

Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

É hoje que sinto
Aquilo que fui
Minha vida flui
Feita do que minto.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.

Fernando Pessoa



terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Era de inverno em Vila Real..." (Joaquim Manuel Magalhães)

 Vila Real sob a neve (Fotografia de Carlos Correia Neto)


Era de inverno, em Vila Real. A neve
cobria as ruas que levavam ao liceu.
Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal
no tampo de vidro, o vapor da respiração
ligava-nos entre as conversas de mesas indiferentes.
E querias olhar para mais dentro de mim.

Os pombos escondidos nos beirais tapavam
a cabeça na plumagem de chumbo, cor do ceú.
Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos
em cada um dos nossos livros a primeira letra
dos nossos nomes, de modo a desenharem
uma única letra que não havia em alfabeto nenhum.
Que bem que estávamos tão mal ali sentados,
a faltar às aulas, nessa primeira vez
em que nos acontecia, sem sabermos, um amor.

Tu não ias adivinhar as leis secretas
que já nos separavam. Tu não podias
lutar na via de sangue da minha vida.
Mas sempre que tombar a neve em Vila Real
e desceres a avenida a caminho do café
de alguma destas coisas, quem sabe, te hás-de lembrar.

Joaquim Manuel Magalhães


sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Aqueles dois (Caio Fernando Abreu)



Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Caio Fernando Abreu

Excerto do conto Aqueles dois, do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu.


Um sabiá laranjeira em liberdade

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Teseu, ao telefone (David Mourão-Ferreira)

Fotografia de Paula Walker



TESEU, AO TELEFONE

Labirinto de néon e de vento,
noite por estas ruas, sob a chuva...
Na cabina telefónica procuro,
entre milhares de fios, um somente.

Com seu corpo de touro, a tempestade,
com seu rosto de gente, a tentação,
já nas esquinas lóbregas travaram,
comigo, corpo-a-corpo, tal combate

que somente encontrando aquele fio,
o da voz de Ariana, poderei
reconduzir-me inteiro ao meu destino.

E através deste círculo de números
vou tentando o acesso ao parapeito
- que daqui se não vê, porque está escuro.

David Mourão-Ferreira

 

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Luuanda (José Luandino Vieira)

Vista aérea da cidade de Luanda (Fotografia de Carlos João)

Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque∗, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas∗ arrumadas à toa. Assim, quando vavó adiantou sentir esses calores muito quentes e os ventos a não querer mais soprar como antigamente, os vizinhos ouviram-lhe resmungar talvez nem dois dias iam passar sem a chuva sair.

Ora a manhã desse dia nasceu com as nuvens brancas — mangonheiras∗ no princípio; negras e malucas depois — a trepar em cima do musseque. E toda a gente deu razão em vavó Xíxi: ela tinha avisado, antes de sair embora na Baixa∗, a água ia vir mesmo.

A chuva saiu duas vezes, nessa manhã.

Primeiro, um vento raivoso deu berrida∗ nas nuvens todas fazendo-lhes correr do mar para cima do Kuanza∗. Depois, ao contrário, soprou-lhes do Kuanza para cima da cidade e do Mbengu∗. Nos quintais e nas portas, as pessoas perguntavam saber se saía chuva mesmo ou se era ainda brincadeira como noutros dias atrasados, as nuvens reuniam para chover mas vinha o vento e enxotava. Vavó Xíxi tinha avisado, é verdade, e na sua sabedoria de mais velha custava falar mentira. Mas se ouvia só ar quente às cambalhotas com os papéis e folhas e lixo, pondo rolos de poeira pelas ruas. Na confusão, as mulheres adiantavam fechar janelas e portas, meter os monas∗ para dentro da cubata, pois esse vento assim traz azar e doença, são os feiticeiros que lhe põem.

José Luandino Vieira

∗ musseque — antigo bairro popular, urbano ou suburbano.
∗ cubata — habitação feita de restos de materiais de construção; barraco, casebre.
∗ mangonheiro — preguiçoso, lento; malandro, vadio.
∗ Baixa — parte baixa da cidade de Luanda; centro comercial.
∗ berrida — corrida. Dar barrida — dar uma corrida (em alguém); afugentar, afastar com violência; expulsar.
∗ Kuanza — principal rio de Angola; nasce no planalto do Bié e deságua ao sul de Luanda.
∗ Mbengu — rio de Angola, a norte de Luanda.
∗ mona — criança.


José Luandino Vieira, é o pseudónimo literário do escritor angolano José Vieira Mateus da Graça, que nasceu em Vila Nova de Ourém, Portugal, a 4 de Maio de 1935.

Luuanda é um romance publicado em 1963.

Para saber mais de José Luandino Vieira.

Em 2006 Luandino Vieira recusou o Prémio Camões por "razões pessoais" (ler aqui)



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sociedade de Consumo



- Boa tarde!
- Boas... Diga.
- Queria uma água com gás.
- Fresca ou natural?
- Fresca.
- Com ou sem sabor?
- Pode ser de limão.
- Frize limão, Castelo Bubbles, Carvalhelhos limão?
- Sei lá, traga-me uma qualquer... Frize.
- Frize limão já acabou.... Pode ser morango, tangerina ou maracujá?
- Esqueça... Traga-me umas Pedras...
- Fresca ou natural?
- Fresca...
- Com ou sem limão?
- Sem…
- Normal ou levíssima?
- Quem?
- Normal ou uma nova que saiu, que é mais leve....?
- Meu amigo, traga-me uma Bohemia e esqueça o resto....
- Sagres Bohemia não temos. Só temos normal, Preta e Zero…
- Então traga uma Superbock!
- Garrafa ou imperial?
- Garrafa.
- Superbock normal, Green, Twin ou Stout?
-Arre porra... já perdi a sede...
Mais logo, quando me der a sede outra vez, vou à fontinha beber água!



Lido no blogue Engarrafamentos


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Adeus (Eugénio de Andrade)



ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tengo a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade




segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Exame de Filosofia vai ser reposto no ensino secundário



A disciplina de Filosofia deverá voltar a integrar, já no próximo ano lectivo, o lote de exames obrigatórios para a conclusão do ensino secundário. Esta foi a garantia que o Ministério da Educação deu à Sociedade Portuguesa de Filosofia, indicou ao PÚBLICO o seu presidente, Ricardo Santos.


O último exame de Filosofia realizou-se em 2007. O fim desta prova, realizada no 11.º ano, fora decidido dois anos antes pelo Ministério da Educação. A disciplina de Filosofia deixou também de ser obrigatória no 12.º ano dos cursos científico-humanísticos, geralmente escolhidos pelos estudantes que querem prosseguir estudos. Deste modo deixou também de figurar entre as provas de acesso pedidas pelas instituições do ensino superior.

Estas medidas foram contestadas pela sociedade portuguesa e pela associação de professores de Filosofia e também por vários responsáveis do ensino superior, que alertaram para o perigo de uma morte a prazo da disciplina. O Ministério da Educação não forneceu números sobre a evolução do número de inscritos em Filosofia no 12.º ano. Ricardo Santos assegura que a disciplina deixou praticamente de existir neste ano de escolaridade. No 10.º e 11.º continua a ser obrigatória, mas, segundo o presidente da SPF, as medidas adoptadas contagiam também estes anos: "Registou-se uma desvalorização da disciplina. Os alunos deixaram de investir tanto nela e há uma maior desmotivação dos docentes".

O Ministério da Educação - que não respondeu às questões do PÚBLICO - terá optado agora por arrepiar caminho. Tanto Ricardo Santos, como Alexandre Franco de Sá, presidente da Associação de Professores de Filosofia, asseguram que o primeiro passo será dado já em Fevereiro próximo, com a realização, no 10.º ano, de um teste intermédio de Filosofia. A informação sobre a estrutura e conteúdos da prova já foi enviada para as escolas. Estes testes funcionam como ensaio para os exames nacionais, tendo vindo a ser realizados, nos últimos anos, nas disciplinas sujeitas a estas provas. E são facultativos. Segundo Ricardo Santos, pelo menos um terço das 600 escolas secundárias inscreveu-se para realizar o teste de Filosofia.

Ricardo Santos está convicto de que a reafirmação da importância da disciplina será bem acolhida pelos estudantes e que não será difícil cativá-los: "O ensino antes era muito centrado na história da Filosofia. Hoje esta já não tem tanto peso e o ensino é mais focado em problemas que os jovens sentem e que os perturbam e a Filosofia dá-lhes respostas diferentes para estes problemas". Defende, no entanto, que o programa em vigor "está muito ultrapassado, não sendo, por isso, adequado".


Uma notícia do jornal Público (11-Novembro-2010)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Livro do desassossego (Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa, por Júlio Pomar

Um paradoxo. Fernando Pessoa vem pela primeira vez a este blogue não como poeta, mas como prosador, pela mão do seu heterónimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa,  autor do Livro do desassossego. Serão publicados mais excertos deste livro.


Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.


O que são os heterónimos?



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O estado de graça (Clarice Lispector)


Clarice Lispector



O ESTADO DE GRAÇA

Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.

O estado de graça de que falo é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.

No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe (pessoa ou coisa) respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.

Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.

As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como uma anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.

Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe (não há nenhum transe), sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.

Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.

Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado freqüentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.

Também é bom que não venha tantas vezes quanto se queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade - esqueci de dizer que e estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam -tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida.

Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita freqüência o estado de graça. Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidades e alegria menores.

Também é bom que o estado de graça demore pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar nos mistérios da natureza. No que eu tentasse, aliás, tenho a certeza de que a graça desapareceria. Pois ela é dádiva e, se nada exige, desvaneceria se passássemos a exigir dela uma resposta. É preciso não esquecer que o estado de graça é apenas uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada nele, nem dá o direito de se comer frutos de seus pomares.

Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha sorrido, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. É exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.

Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça.


Clarice Lispector



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Balada da praia dos cães (José Cardoso Pires)



Presente nos autos e em figura própria Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite crónica. No aspecto exterior nada de particular a registar como circulante do mundo em geral a não ser talvez a unha do dedo mínimo que é crescida e envernizada, unha de guitarrista ou de mágico vidente, e que faz realçar o anel de brasão exposto no mesmo dedo. Veste habitualmente casaco de xadrez, calça lisa e gravata de luto (para os devidos efeitos) com alfinete de pérola adormecida; caranguejo de ponteiros fluorescentes, marca Longines, que usa no bolso superior do casaco com amarra de ouro presa à lapela; farolins de lentes grossas, à toupeira, com comportamento mortiço; carece de capilares no couro cabeludo, o crânio é pautado por cabelinhos poucos mas poupados, e distribuídos de orelha a orelha.

[Elias Cabral Santana, folha contida: n. em Lisboa 1909, na freguesia da Sé, filho dum juiz de comarca. Estudos liceais no Colégio de São Tiago Apóstolo, que abandona por morte dos pais, tendo ficado aos cuidados da irmã até à maioridade. Jogador nocturno e cantor lírico em academias de bairro. Após um período de internamento no Sanatório da Flamenga, Loures, é admitido como estagiário na Polícia Judiciária (10-7-1934) por despacho do então director, juiz Bravo. À margem é conhecido por Covas ou Chefe Covas decerto porque, prestando serviço na Secção de Homicídios há mais de vinte anos, tem passado a vida a desenterrar mortes trabalhadas e a distribuir assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as penitenciárias do país. Com louvor e dedicação, também consta da sua folha de serviços. Com a reserva e a sem paixão que competem à sua especialidade e tanto assim que jamais pronuncia a palavra Defunto, Finado ou Falecido a propósito do cadáver que lhe é confiado, preferindo tratá-lo por De Cujus que sempre é um termo de meretíssimo juiz. Elias Santana, o Covas, costuma responder que «anda aos calados» quando porventura o encontram em serviço a horas e em locais inesperados e por aqui já se pode avaliar a discrição e a naturalidade com que encara os mortos e os seus matadores, nada mais tendo a declarar.]

José Cardoso Pires

Do seu romance  Balada da praia dos cães (1982)



quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Os meus amigos (Camilo Castelo Branco)

Camilo Castelo Branco numa nota da antiga moeda portuguesa


OS MEUS AMIGOS

Amigos cento e dez e talvez mais
Eu já contei! Vaidades que eu sentia.
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia,
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco (1825-1890)


Mais dados sobre este autor: Casa de Camilo


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A importância do "Não sei..."

Armadilha para Executivos, serigrafia de Regina Silveira

A IMPORTÂNCIA DO "NÃO SEI..."

"Esta é para todos os que dizem que "não sei não é resposta"!
A importância do: "não sei". Se ainda não sabes qual é a tua verdadeira vocação, imagina a seguinte cena:

Estás a olhar pela janela, não há nada de especial no céu, somente algumas nuvens aqui e ali... aí chega alguém que também não tem nada para fazer e pergunta: – Será que vai chover hoje?

Se responderes "com certeza...", a tua área é Vendas: – o pessoal de Vendas é o único que tem sempre a certeza de tudo.

Se a resposta for "sei lá, estou a pensar noutra coisa..." – então a tua área é Marketing: – o pessoal de Marketing está sempre a pensar naquilo em que os outros não estão a pensar.

Se responderes "sim, há uma boa probabilidade..." – És da área de Engenharia: – o pessoal da Engenharia está sempre disposto a transformar o universo em números.

Se a resposta for "depende..." – nasceste para Recursos Humanos: – uma área em que qualquer facto estará sempre na dependência de outros factores.

Se responderes "ah, a meteorologia diz que não..." – Então és da área de Contabilidade: o pessoal da Contabilidade confia mais nos dados do que nos próprios olhos.

Se a resposta for "sei lá, mas por via das dúvidas eu trouxe um guarda-chuva": – então o teu lugar é na área Financeira que deve estar sempre bem preparada para qualquer mudança de tempo.

Agora, se responderes "não sei"... há uma boa chance de teres uma carreira de sucesso e chegares a director da empresa. De cada 100 pessoas, só uma tem a coragem de responder "não sei" quando não sabe.

Os outros 99 acham sempre que precisam de ter uma resposta pronta, seja ela qual for, para qualquer situação. Não sei é sempre uma resposta que economiza o tempo de toda a gente e predispõe os envolvidos a conseguir dados mais concretos antes de uma tomada de decisão.

Parece simples, mas responder "não sei" é uma das coisas mais difíceis de se aprender na vida corporativa. Porquê? Eu, sinceramente, "não sei".



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Infância (Carlos Drummond de Andrade)



Para além de ler estes versos de Carlos Drummond de Andrade, podemos ouvi-los na voz do próprio poeta.


INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
cafe gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade








terça-feira, 2 de novembro de 2010

Cães, marinheiros (Herberto Helder)



CÃES, MARINHEIROS

Era um cão que tinha um marinheiro. O cão perguntou à esposa, que se pode fazer de um marinheiro? Põe-se de guarda ao jardim, respondeu ela. – Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim, que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e pode recear-se o poder do elemento de base: o radical mar. Em vez de guardar o jardim, ele acabaria por fugir para o mar. – Deixá-lo fugir, disse a esposa do cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. – Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. – Nem todos os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a outros cães com quem se cruzavam, que possuíam um marinheiro invulgarmente esperto. – Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. Um cão da Estrela, que encontraram naturalmente perto da Serra da Estrela, perguntou-lhes se o marinheiro gostava de sardinhas. – Adora-as, respondeu a cadela.– Isso não me admira nada, disse o indígena. E na verdade não parecia admirado. Quando chegaram ao mais interior possível, alugaram uma casa com um jardim e puseram o marinheiro a guardá-lo.– Guarda-o, disseram. Deixaram-lhe ao lado uma dúzia de latas de sardinhas e foram para dentro de casa. Durante sete dias e sete noites, o marinheiro reflectiu sobre as paisagens do interior e comeu as sardinhas de conserva. Depois foi atacado de esgana, e começou a andar em círculos cada vez mais apertados no meio do jardim. Os cães observavam-no da janela e viam que o seu marinheiro perdia as forças a cada nova volta. Um dia, ao anoitecer, caiu para o lado resfolegando.– O mar, ouviram-no dizer. Então foram para dentro, e dormiram. De manhã vieram cedo ao jardim e verificaram que o marinheiro estava morto.– Era um marinheiro tão esperto, disse a cadela. – Pois era, disse o cão, foi pena. E enterraram o marinheiro debaixo de uma acácia. Mas como já se haviam habituado à vida do interior, não regressaram ao litoral. Nunca mais tiveram marinheiros. – Para quê?, dizia a cadela, ralações já existem de sobra. E quem se atreve a negar que ela tinha razão?

Herberto Hélder

Do seu livro Os Passos em Volta (1963)


sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O assobiador (Ondjaki)

Uma igreja angolana (Fotografia de Vítor Pinho)

Chegou em Outubro, ao mesmo tempo que as chuvas compridas e silenciosas daquela aldeia. Os cabelos caíam-lhe pelos lados magros da cara, a roupa estava totalmente ensopada e pesada, os olhos mal se abriam de tanto espanto: era uma chuva tão molhadora como qualquer outra, mas sem o dom natural de fazer barulho ao cair. Acreditou estar no meio de um intenso nevoeiro, e abriu a boca. Provou a água, a sua realidade molhada, e sentou-se à porta da igreja. Nunca tinha vivido uma chuva assim.

Pousou o saco nas escadas. Olhou, ainda com esse olhar molhado, as pombas que circundavam a igreja. Avoavam à volta dela, aterravam nas janelas e voltavam ao avoo. Só elas faziam barulho; só se ouvia o barulho delas. Mais ao longe passeava uma récua de burros. É verdade, burros aglomerados: cinzentos, gordos, felizes e passeantes.

Entrou na igreja com um passo miúdo, sem fazer barulho. Era de manhãzinha e já tinha acontecido a primeira missa. Respirou o ar que lá estava, sentiu uma delicada religiosidade penetrar-lhe os pulmões e o coração. A beleza da arquitectura, a luz filtrada pelos vitrais, a manhã e o momento, a ausência do Padre, fizeram-no começar o assobio. Descobriu, ao fim da primeira música, que se tratava de um dos melhores sítios do mundo para assobiar melodias.

Num assobio tímido, fino, mas ecoado por todo o interior da pequena igreja, confirmou que a propagação do som era influenciada pela direcção para onde assobiasse, e detectou imediatamente sete corredores de assobio, cada qual com seu efeito distinto. Como ninguém aparecesse ou lhe dissesse algo, prosseguiu nos seus testes: um pouco mais alto, com belas trepidações no som, entoou uma melodia mais exaltada, digna, por si só, daquele espaço tão acolhedor quanto propício às musicalidades assobiadas. O som circulava como uma entidade autónoma cujos tentáculos precissassem de exercer um sensitivo reconhecimento do terreno.


Ondjaki

Excerto do livro O assobiador (2002)


Ndalu de Almeida, (Luanda, 1977) mais conhecido por seu pseudônimo Ondjaki, é um escritor angolano.





quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dois blogues com café

Pormenor do Café Majestic, no Porto

COFFEE LOVERS

Hoje fui tomar o pequeno almoço ao café "de referência" aqui na rua do meu escritório. Duas senhoras aproximam-se do balcão e uma delas diz "É uma bica cheia e um abatanado por favor". Pensei para mim: Mas que raio é um abatanado? Chamem-me simplória mas quando quero um café digo simplesmente "É um café por favor". Este epísódio fez-me chegar à conclusão que nunca poderia tirar cafés! Dizem que há um sem número de tipos e formas de fazer um café. Como sou magnânime decidi partilhar convosco a minha parca sabedoria sobre o assunto. Então temos o café (que pode ser em chávena escaldada), a italiana, o café curto, o café cheio, o café pingado, o abatanado, o café duplo, o carioca e essa grande instituição nacional, a bica com um cheirinho (desconfio que se dizer café com um cheirinho não saberão o que é). Depois temos o café com leite. Que nunca lhe passe pela cabeça pedir numa pastelaria um café com leite a menos que queira ser olhado com desconfiança! Deixe isso para os hóteis. Deverá ser mais específico: o garoto, a meia de leite, de máquina ou directa, clara ou escura, o galão, claro ou escuro.

Bom, fiquei com uma súbita vontade de beber um café - o terceiro do dia!

Nota: De acordo com as minhas pesquisas abatanado é um café pouco concentrado, que tem geralmente o dobro da água de um café expresso, para a mesma quantidade de café, servido em chávena grande.

Retirado do blogue Incontinentes verbais



EU NÃO GOSTO DE CAFÉ

Porquê? Não sei!
Mas desconfio!

Estava no outro dia no café quando a babe me pede para pedir (bonita construção frásica esta "me pede para pedir") uma meia de leite. Como eu não bebo café aquilo para mim é tudo a mesma mistela de água com um pó manhoso castanho com mau aspecto, e por vezes um bocado de leite.

Quando cheguei ao balcão, pedi um galão. Quando lhe apareci com o galão... foi um ver se te avias...

- Então mas não tinhas pedido um galão?
- Não, tinha pedido uma meia de leite!
- E qual é a diferença?

Ainda hoje estou para saber... De qualquer maneira é aqui que entra a minha desconfiança com o café! É que com tanta variedade, eu não saberia o que pedir, se não vejamos:

Café
Bica
Meia de leite
Garoto
Curto
Longo
Cheio
Pingado
Com Cheirinho
Abatanado
Carioca
Curta
Cimbalino
Expresso
Café com leite
Capuccino
Italiana
Duplo
Pingo
Claro
Escuro

E estes foram os que eu me lembrei agora! Ainda faltam os outros… Porque os há!!! Por isso mais vale ficar com sono do que beber uma cena manhosa. Mas que cheira bem, isso cheira!

(...)


Retirado do blogue Por tudo ou por nada


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Porque (Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia por Arpad Szenes



PORQUE

Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada a podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dados com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não

Sophia de Mello Breyner Andresen

  

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Capitães da areia (Jorge Amado)



Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do doutor Chefe de Polícia.

Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general. E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos, não só ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de ontem. Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida.

O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões. Passemos agora a relatar o assalto deontem, do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça, que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos.


Jorge Amado


Início do romance Capitães da areia (1937), uma das suas melhores obras.

Para saber de Jorge Amado



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

25/11/1995 (Teresa Rita Lopes)

Fotografia de El ovo 2

Um dos poemas lidos hoje por Teresa Rita Lopes na Aula de Poesía Díez Canedo de Badajoz. O poema pertence ao seu livro Cicatriz (1996). A poeta portuguesa foi muito bem apresentada por Belén e por Juan Antonio, alunos de Português do 2º ano de Bachillerato.


25/11/1995

Começar o dia com os gestos
de minha Mãe:
aquecer a água e o leite
cortar o pão
contra o peito
lavar o prato a chávena o pires
limpar as migalhas da mesa
arrumar
o que está fora do lugar
E de nada disto ficar resto
de letra escrita
Fazer como ela
poemas com gestos
que nascem e morrem na mesma hora
Talvez por isso eternos

Ser modestamente vivo
Cumprir a vida sem porquês nem ambição
Palpitar sem pensar
como o próprio coração

Teresa Rita Lopes


quarta-feira, 20 de outubro de 2010

...De passarem aves (Jorge de Sena)

Aves no céu de Alter do Chão (Fotografia de PLCA)


...DE PASSAREM AVES

                                                 À memória de Sá de Miranda


Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verão que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.

Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.

Jorge de Sena



Pedra Filosofal (1950)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Delfim (José Cardoso Pires)

O escritor português José Cardoso Pires


O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:

Visto da janela onde me encontro, é um terreno nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia - é facto, grande de mais. E inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastrando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. A tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando-o entregue aos vermes que o minam.

José Cardoso Pires

Do seu livro O Delfim (1968), um dos melhores romances do século XX em Portugal.

Dados sobre José Cardos Pires (1925-1998)


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Meditação (Ruy Cinatti)

Fotografia de Ricardo Baia


MEDITAÇÃO

Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde.
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.
É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua;
Nave de outros tempos se insinua
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.

Ruy Cinatti


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Cinema na RTP2

Veredas, filme de João César Monteiro


Petição pelo regresso da exibição cinematográfica regular à RTP2

Exc. Sr Ministro dos Assuntos Parlamentares Dr. Jorge Lacão

Exc. Sr. Director da RTP2 Dr Jorge Wemans

Exc. Sra.Sub-directora da RTP2 Dra Paula Moura Pinheiro

A RTP2 passa, actualmente, dois filmes ao Sábado à noite e o magazine Onda-Curta na madrugada de segunda-feira. No início da década, passava um filme todos os dias da semana e mais outro ao sábado. Ao longo dos anos, tem-se assistido a um progressivo desinvestimento da estação na programação cinematográfica, consubstanciada não apenas na pequena quantidade de obras exibidas como na repetição regular dos filmes mostrados, alguns dos quais são novamente exibidos passado algum tempo, quer na mesma rubrica quer na madrugada da RTP1. Adicionalmente, os filmes são muitas vezes emparelhados de forma pouco criteriosa, sendo difícil discernir um macrotexto ou um “discurso”que atenda às necessidades e sensibilidades do público e que seja sólido, coerente e inteligível na sua formulação. Infelizmente, longe vão os tempos em que João Bénard da Costa introduzia clássicos do cinema ou Inês de Medeiros entrevistava diversas figuras em “Filme da Minha Vida”. Hoje, o segundo canal da estação de televisão pública não fornece quaisquer instrumentos para que o público seja levado a reflectir e a descodificar os objectos mostrados. O contexto presente no que concerne à exibição cinematográfica na RTP2 é, então, de desresponsabilização, não oferecendo aos seus espectadores oportunidades suficientes de visionamento de filmes nem lhes prestando quaisquer ferramentas de aproveitamento dos poucos filmes que ainda vão sendo exibidos.

Esta situação é grave por dois motivos. (...)

Cá podem ler o texto completo da mensagem, do blogue Breath Away.