segunda-feira, 28 de março de 2011

Nação Crioula (José Eduardo Agualusa)

S. Paulo de Loanda, século XIX

Nação Crioula conta a história de um amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlos Fradique Mendes – cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu – e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, tendo nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola. Nos fins do século XIX, em Luanda, Lisboa, Paris e Rio de Janeiro, misturam-se personalidades históricas do movimento abolicionista, escravo e escravocratas, lutadores de capoeira, pistoleiros a soldo, demiurgos, numa luta mortal por um mundo novo.

Resumo retirado da página do escritor angolano José Eduardo Agualusa (Huambo, 1960)

Eis um excerto inicial deste romance, publicado em 1997.



Minha querida madrinha,

Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e húmido, logo ali me assaltou o sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África.

Olhando a cidade que se erguia fatigada à minha frente pensei que não devia ter trazido o Smith. Vi-o desembarcar, tentando manter o aprumo de Escocês antigo enquanto cavalgava os dois negros, a perna direita no ombro esquerdo de um deles, a perna esquerda no ombro direito de outro. Chegou junto a mim lívido, descomposto pediu perdão e vomitou. Disse-lhe: «Bem-vindo a Portugal!»

À nossa volta ia um tumulto de gente, rindo e gritando, movendo fardos, arrastando animais. Smith conseguiu ao fim de algum tempo contratar os serviços de duas machilas e lá seguimos, suados e salgados, através de uma sucessão de ruas tortas e mal empedradas. Grupos de nativos conversavam à sombra dos muros ou dormiam estendidos de bruços na poeira. À porta do Hotel Glória esperava-nos a figura extraordinária de um homem em evidente evolução para ave. Um velho alto, leve, rosto estreito, nariz adunco e olhos redondos e brilhantes.

– Excelência! – gritou estendendo a mão. – Sou o coronel Arcénio de Carpo.

Eu sabia quem ele era. Un cientista austríaco, meu amigo, que durante varios meses estudou os sertões de Angola a fauna e a flora tinha-me falado dele com entusiasmo: «Em Luanda até o sol lhe obedece. Quase nada sucede na cidade sem a concordância do velho.» A patente de coronel que tão orgulhosamente ostenta – coronel comandante das províncias de Bié, Bailundo e Embo (!) – não tem no entanto significado algum para além do honorífico, já que Arcénio de Carpo não é militar, nunca visitou nenhuma destas províncias, que aliás não prestam vasslagem ao governo português, e em nenhuma delas existe sequer um corpo de soldados.

(...)

Fradique