sexta-feira, 15 de maio de 2020

Miguel Torga - "A minha pátria cívica acaba...”

Fotografia de Robert Grant


A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular. Ardo no fogo desta fé que nos devora, exalto-me nas ambições desmedidas dos nossos maiores, e afundo-me dentro de uma invencível armada de quimera.

Miguel Torga

(Diário, Coimbra, 14 de Novembro de 1985).




(Lido aqui)


quarta-feira, 13 de maio de 2020

António Gedeão - Homem

Fotografia de Rafael Rodríguez 


HOMEM

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão



segunda-feira, 11 de maio de 2020

João de Deus - Adoração

Fotografia de Luiz Felipe Sahd 


Adoração

Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

João de Deus





domingo, 10 de maio de 2020

Fernando Sylvan - Infância

Fotografia de Marie-Pierre Lambelin


INFÂNCIA

as crianças brincam nas praias dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar.

Fernando Sylvan


Tempo teimoso (1972)



sexta-feira, 8 de maio de 2020

Manuel Bandeira - Poema tirado de uma notícia de jornal



POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Manuel Bandeira


Libertinagem (1930)


De Ágora Gaia
https://m.youtube.com/watch?v=YSF6UMTibsY

Descoberta da origem do poema
https://m.youtube.com/watch?v=BvrJUa0Oj-8









segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ana Luísa Amaral - Assim se revisita o coração

Obra de Paulo Ito 


ASSIM SE REVISITA O CORAÇÃO

Só mal tocando as cordas
da memória
consegue o coração ressuscitar

Porque era este lugar
que eu precisava agora
como em deserto até
ao infinito,
e de repente,
uma gravidez imensa,
um cacto verde e limpo

Porque os olhos conhecem
estes sons
de dar à luz o vento
e são-lhe amantes
de tangível luz

Só mal tangendo as cordas
da memória
como estas flores
se tingem de alegria

Porque era neste azul
que eu me queria
como a rocha transpira
e se resolve
em mar

Ana Luísa Amaral