CANTIGA DE EMBALAR
Tão docemente se ouve um grito de criança,
enquanto a noite cerra o seu passo mais largo
que a névoa branda em torno aos candeeiros.
Até mim chegam indistintos halos
de luzes próximas, talheres fulgindo,
além, por sobre quintais abandonados.
No céu, sem estrelas como um fumo inútil,
espraiam-se olhares, silêncios, cartas esquecidas,
e túmulos perdidos no subsolo das casas.
Um grito de criança. E, no entanto,
há uma guerra, uma paz, armamentos sem fim,
e é importantissimo estudar economia política.
Saberás, meu filho do acaso de outros,
ser diferente sempre, dia a dia?
Saberás bem tudo, e sem saber o quê?
Serás como esta noite de um silêncio grávido
suspenso eternamente sobre as coisas?
Jorge de Sena
Coroa da Terra (1946) em Poesia - I, 2ª edição. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa/1977
(Fotografia de Otalicio Rodrigues)