quinta-feira, 2 de maio de 2013
Ah, mundo (Mario Quintana)
AH, MUNDO
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
- rotos e felizes! -
por essas estradas do mundo.
Mario Quintana
segunda-feira, 29 de abril de 2013
José Eduardo Agualusa e o Acordo
José Eduardo Agualusa diz que Portugal tem mais a ganhar com acordo ortográfico do que o Brasil
Lusa 13/03/2013 - 11:25
Em Macau para participar no Festival Literário – Rota das Letras, o escritor angolano lembra que são as editoras portuguesas que querem entrar no mercado brasileiro.
O escritor angolano José Eduardo Agualusa defendeu esta quarta-feira, em Macau, que Portugal tem mais a beneficiar com o novo acordo ortográfico do que o Brasil, dado que são as editoras portuguesas que estão interessadas em entrar no mercado brasileiro.
“As editoras brasileiras têm ainda imenso espaço para ocupar no Brasil, não estão preocupadas nem com Portugal nem com África, e quem está a entrar no Brasil são as editoras portuguesas. Portanto, o acordo ortográfico, desse ponto de vista, é sobretudo benéfico para as editoras portuguesas, não para as brasileiras, e se alguém fosse beneficiar seria Portugal”, disse o escritor.
Durante um encontro com alunos da Escola Portuguesa de Macau, no âmbito do Festival Literário – Rota das Letras, Agualusa, questionado sobre a sua posição em relação ao acordo ortográfico, disse “não ter já paciência para falar” sobre o assunto, porque ele “não é interessante”. “Defendo uma ortografia comum”, reiterou, considerando “não haver nenhuma vantagem em existir mais do que uma ortografia no mesmo espaço linguístico”.
Se houvesse, continuou, “porque não ter mais do que uma ortografia em Portugal, por exemplo? Os alentejanos têm o seu português, os lisboetas têm o seu português, os algarvios também, mas todos escrevem com a mesma ortografia”. O acordo ortográfico é importante, na perspectiva de José Eduardo Agualusa, “para países como Angola e Moçambique, que produzem poucos livros e importam mais, de Portugal e do Brasil e, de repente, há duas ortografias no mesmo território, o que confunde as pessoas, especialmente as que estão a chegar agora ao livro”.
“Nunca entendi por que houve tanta celeuma em relação ao acordo, porque é uma coisa que não interfere com a vida das pessoas”, disse, salientando que “Vasco Graça Moura errou no dramatismo, porque o que ele dizia era que o mundo ia acabar com a aplicação do acordo, era como um desastre global”. “Mas a verdade é que não conheço um único caso de diarreia, ninguém passou mal porque o acordo começou a ser aplicado”, disse.
O acordo ortográfico “tem uma relevância muito pequena”, mas “tem importância sobretudo para os países que importam livros”, rematou.
Diário Público
quinta-feira, 25 de abril de 2013
Grândola viral (Leonete Botelho)
GRÂNDOLA VIRAL
Os protestos dispersos que recebem governantes ao som de Grândola Vila Morena
contêm em si a semente do incontrolável. Já não são organizados com
antecedência, nem por uma estrutura conhecida e previsível. Não. Têm o
poder atómico e viral da Internet, porque se reproduzem em átomos
múltiplos, dispersos e imprevisíveis. De boca em boca, de ecrã em ecrã,
usando apenas o poder da palavra, da rede e da imaginação.
É por isso que o Governo
está tão preocupado. Como se controla uma manifestação assim? Não se
controla. Uma só voz que se levante numa sala cheia tem a capacidade de
criar um coro que cala quem está habituado apenas a ser ouvido. Agora é o
cidadão comum que quer ser ouvido.
Podemos tentar encontrar
razões para estes protestos, mas parece um exercício inútil. Não estamos
todos a viver neste país neste momento? Não sabemos todos o ponto em
que estamos, mesmo que sejam diversas as opiniões sobre as causas e as
consequências?
Como se controlam manifestações avulsas,
espontâneas e desenquadradas politicamente? Não se controlam. Evitam-se.
Não fechando as portas dos palácios, porque elas não serão suficientes
para conter a indignação. Nem evitando os contactos com as pessoas,
porque a sua voz virá sempre pelas ondas hertzianas e electrónicas.
Os
políticos têm agora de aprender a falar uma linguagem de dois sentidos:
falar como quem sente e ouvir como quem aprende. Reconhecer. E terão de
o fazer depressa. Ou ainda vão ter saudades das manifestações em que se
atiravam pedras. Contra essas, bastonada basta.
segunda-feira, 22 de abril de 2013
As árvores e os livros (Jorge Sousa Braga)
Fotografia de Richard Sangi
AS ÁRVORES E OS LIVROS
As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
Jorge Sousa Braga
Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
Jorge Sousa Braga
Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Amigo (Alexandre O'Neill)
AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill
Do seu livro No Reino da Dinamarca (1958)
segunda-feira, 8 de abril de 2013
O relógio de ouro (Machado de Assis)
Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande
cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís
Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em
casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria
ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da
alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da
situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís
Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem
corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou
logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto
pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma
criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era
mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro
aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não
tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso
parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros
lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a
descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de
pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros
gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava
de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou
cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís
Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios,
compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma
cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e
lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta
primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais
objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante
algum tempo e refletiu sobre ocaso, interrogou todas as suas
recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de
Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha
acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar
indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de
cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois
reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz
doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar. Luís Negreiros
não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela;
depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo
que a moça de novo lhe perguntou:
— Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
—
Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e
apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de
trovão. Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve
algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os
seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o
primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e
dizendo em seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
— Não sei.
Luís
Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A
mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena.
Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe
nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha
fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os
pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que
Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado.
Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a
passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se
meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís
Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura,
sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído
que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou
acabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta
situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não
podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as
lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela;
puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.
—
Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei
com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito
nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele
relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então...
— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.
—
É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao
chão. Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação
tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais
agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a
atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a
cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca
de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa,
quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
—
Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás. Saiu da sala de
costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo
viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarrase do
candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando...
— Conversando?... repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos... é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?...
— Sim, não fazes anos amanhã?
—
Ah! é verdade...Não havia razão aparente para que, depois destas
palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta
vez com um tom descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!...
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se
espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e
inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
—
Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles
seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar. Luís Negreiros foi ter
com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos
diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo
isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto
nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí
a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa,
que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a
respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que
toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A
declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a
terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles
era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas
em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e
via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais
sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha.
Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de
dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua
decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro,
dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes
pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro,
mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles
confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por
isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros
desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias,
tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e
ogenro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E
era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam
tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo
a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se
recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do
alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a
mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar
fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu
conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau
destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
“Estão
de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da
filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís
Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias
com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o
sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a
explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia
desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um
suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os
esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo
achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em
casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem
tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha
sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café,
Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a
idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não
te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu
marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha
não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a
resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os
ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã,
apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes
que nem a sombra meverão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O
jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que
lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em
ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha
protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo,
nunca mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um
jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia
o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha
fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com
ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e
soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das
mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a
explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu
não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu
me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de
indignação com que amoça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do
marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não
disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais
admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a
si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação
pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes
do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite.
Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e
assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito
recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado
desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as razões, todos os
incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça,
em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a
foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com
que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as
lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela
conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava
contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar,
inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má
começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo
penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era
homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças,
saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha
recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove
horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento.
A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os
olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde? A moça não respondeu.
—
Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida. A
moça levantou os ombros. Uma nuvem passou pelos olhos de Luís
Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres! Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro.
Quando
esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o
portador me disse. Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina
e leu estupefato estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
Machado de Assis (1839-1908) foi um escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário. Testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época.
terça-feira, 2 de abril de 2013
Algumas proposições com pássaros... (Ruy Belo)
ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
Ruy Belo
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