Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande
cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís
Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em
casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria
ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da
alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da
situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís
Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem
corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou
logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto
pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma
criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era
mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro
aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não
tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso
parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros
lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a
descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de
pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros
gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava
de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou
cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís
Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios,
compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma
cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e
lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta
primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais
objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante
algum tempo e refletiu sobre ocaso, interrogou todas as suas
recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de
Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha
acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar
indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de
cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois
reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz
doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar. Luís Negreiros
não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela;
depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo
que a moça de novo lhe perguntou:
— Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
—
Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e
apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de
trovão. Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve
algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os
seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o
primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e
dizendo em seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
— Não sei.
Luís
Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A
mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena.
Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe
nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha
fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os
pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que
Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado.
Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a
passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se
meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís
Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura,
sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído
que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou
acabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta
situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não
podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as
lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela;
puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.
—
Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei
com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito
nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele
relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então...
— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.
—
É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao
chão. Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação
tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais
agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a
atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a
cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca
de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa,
quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
—
Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás. Saiu da sala de
costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo
viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarrase do
candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando...
— Conversando?... repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos... é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?...
— Sim, não fazes anos amanhã?
—
Ah! é verdade...Não havia razão aparente para que, depois destas
palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta
vez com um tom descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!...
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se
espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e
inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
—
Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles
seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar. Luís Negreiros foi ter
com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos
diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo
isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto
nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí
a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa,
que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a
respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que
toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A
declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a
terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles
era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas
em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e
via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais
sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha.
Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de
dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua
decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro,
dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes
pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro,
mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles
confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por
isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros
desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias,
tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e
ogenro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E
era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam
tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo
a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se
recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do
alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a
mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar
fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu
conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau
destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
“Estão
de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da
filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís
Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias
com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o
sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a
explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia
desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um
suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os
esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo
achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em
casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem
tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha
sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café,
Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a
idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não
te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu
marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha
não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a
resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os
ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã,
apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes
que nem a sombra meverão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O
jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que
lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em
ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha
protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo,
nunca mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um
jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia
o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha
fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com
ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e
soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das
mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a
explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu
não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu
me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de
indignação com que amoça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do
marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não
disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais
admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a
si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação
pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes
do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite.
Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e
assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito
recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado
desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as razões, todos os
incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça,
em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a
foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com
que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as
lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela
conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava
contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar,
inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má
começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo
penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era
homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças,
saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha
recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove
horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento.
A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os
olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde? A moça não respondeu.
—
Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida. A
moça levantou os ombros. Uma nuvem passou pelos olhos de Luís
Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres! Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro.
Quando
esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o
portador me disse. Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina
e leu estupefato estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
Machado de Assis (1839-1908) foi um escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário. Testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época.