sábado, 30 de novembro de 2024

Fernando Assis Pacheco - Peso de Outono

 

PESO DE OUTONO

Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.

Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderem as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.

Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias ébrios da vindima.

Fernando Assis Pacheco


Cuidar dos vivos (1963), in A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006  



Fernando Pessoa - Marinha

 


MARINHA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Doou-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

s. d.

Fernando Pessoa


Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 1ª publ. in Presença , nº 5. Coimbra: Jun. 1927



(Vapor Villa Franca. Cais de Alcântara, Porto de Lisboa. Fotógrafo: Horácio Novais)


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Joaquim Manuel Magalhães - Nada consentia




NADA CONSENTIA

Nada consentia ainda o nosso amor.
Eu punha sobre os teus ombros os meus braços
anulado da gente mais agreste
e descobria o riso ao pé do teu.

Era o que sou e sabia cantar-

te, queria que visses em redor
toda a cinza a que tu não pertencias.
Tu vias. Eu cantava. Era o amor.

Joaquim Manuel Magalhães 


Lido no blogue Canal de poesia



(Fotografia de Patricia Chumillas)


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Adília Lopes - Marianna e Chamilly




MARIANNA E CHAMILLY

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades

Terei
sempre saudades
e gosto assim

Adília Lopes


Do seu livro Caderno (2007)



segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Maria Teresa Horta - Minha Senhora de Mim

 



Minha Senhora de Mim

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito.

Maria Teresa Horta


Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971) por Ana Bárbara Pedrosa, 15 de novembro de 2019 [Esquerda]

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo."

* * * * *

“Comigo me desavim”, de Sá de Miranda


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Manuel de Barros - Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo



TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros



(Hoje é o décimo aniversário da morte de Manoel de Barros)


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Almada Negreiros - Encontro



 

ENCONTRO

                                 A Carlos Queiroz


Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá prò futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?!

Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

Almada Negreiros




(Giorgio de Chirico - La nostalgia del infinito, 1911-13)


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Rui Knopfli - Frutos do mar (A morte em família)

 

5. Frutos do mar

Uma dúzia de ostras geladas
e café grego. Envelheço.
Ignoro se virei a usar
as calças arregaçadas em baixo
em fim de tarde por praias
agrestes. Bebo o café em golos
curtos, demorados, roubando
ao tempo, o que o tempo
não dá. Outra vez menino
enfrento, aos ombros de meu pai,
a carneirada mansa das ondas.
Mas meu pai partiu
e receando, sòzinho, o mar
entrincheiro-me sobre as ostras
e a espessura do café grego
no canto mais obscuro do botequim.

Rui Knopfli


De “A morte em família” [poema em cinco partes], in Mangas Verdes com Sal (1969)




sábado, 2 de novembro de 2024

Manuel Bandeira - Poema de finados


 

POEMA DE FINADOS

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai; mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero,
E em verdade estou morto ali.

Manuel Bandeira


Libertinagem (1930)



(Fotografia: cemiteriosp)