segunda-feira, 29 de julho de 2024

António Gregório - Café




CAFÉ

Sete adolescentes de mochilas escolares na mesa da esplanada acompanhando um, o único, que abancou para um café. Era o tempo dos primeiros cafés: eu ainda não percebia a pertinência do hábito e temia que isso me prejudicasse a verdade da performance. Primeiro, o pedido (impedir a insegurança de ler qualquer esgar Olha o puto já toma café no empregado); a seguir, os três quartos de açúcar como medida afinadíssima a décadas de dois cafés diários; depois mexer a mistura melindrosa de alheamento e semiconsciência de uma necessidade de vida ou morte à beira de ser satisfeita; e agora aguentar o amargo, o escaldão, o quão longe está tudo do McIdeal. Mas correu-me bem: lembro-me de no fim pensar que Marchava um cigarrinho.

Antonio Gregório


(Publicado há alguns anos no seu blogue Coração Acordeão)




(Fotografía de Amélia Monteiro)


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Hélia Correia - Para que servem os poetas em tempo de indigência?


PARA QUE SERVEM OS POETAS EM TEMPO DE INDIGÊNCIA?

um vídeo-poema a partir de "A Terceira Miséria", de Hélia Correia

24 Setembro, 22h00, Herdade da Urgueira no Encontro "Poesia, Um Dia" (Vila Velha de Ródão)

uma criação colectiva de Ana Gil, Nuno Leão, Nuno Mendoza e Tiago Moura com a participação do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal de Ródão e de alguns elementos da comunidade local

apoio Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão




segunda-feira, 15 de julho de 2024

Mia Couto - Sazonais eternidades

 



SAZONAIS ETERNIDADES

Abres-me, janela,
e antigas memórias
me salpicam o rosto,
chuvas ainda por desabar.

Escancaradas portadas,
devolvem-me o corpo,
esse mesmo corpo
que, para febre e desejo,
em outro corpo acendi.

Abres-me, saudade
e o tempo se descalça
pra atravessar
incandescentes brasas.

e quando,
de novo, me encerras
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.

Mia Couto


Tradutor de chuvas (2011)



(Fotografia de Carlos Reis - Janela, Maputo)


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Ana Paula Inácio - deixa o tempo fazer o resto

 


deixa o tempo fazer o resto
fechar janelas
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz
a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto.

Ana Paula Inácio


Vago Pressentimento Azul por Cima. Ilhas, Porto (2000)




(Fotografia de Dave and Jodi Piddington)


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Maria do Rosário Pedreira - "Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram..."

Os amantes (1928), de René Magritte



                                                                                                para J.G.

Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos

desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam

trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.

Maria do Rosário Pedreira


Do seu livro A Casa e o Cheiro dos Livros (1996)