terça-feira, 28 de maio de 2024

Manoel de Barros - O apanhador de desperdícios




O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros




(Fotografia de Rosa Gambóias)




sexta-feira, 24 de maio de 2024

António Botto - “Meus olhos que por alguém…”

António Botto (1897 - 1959)



Meus olhos que por alguém
deram lágrimas sem fim
já não choram por ninguém
- basta que chorem por mim.

Arrependidos e olhando
a vida como ela é,
meus olhos vão conquistando
mais fadiga e menos fé.

Sempre cheios de amargura!
Mas se as coisas são assim,
chorar alguém - que loucura!
- Basta que eu chore por mim.

António Botto



Aqui se pode ouvir este poema como canção, Choram meus olhos, na voz de Teresa Silva Carvalho.




segunda-feira, 20 de maio de 2024

Aquilino Ribeiro - Ó rapaz vai ao Bras

Aquilino Ribeiro (1885 - 1963)



Ó RAPAZ VAI AO BRAZ

– Ó rapaz,
vai ao Brás
ver se te faz
a tenaz.

– Foi pelo pombo trocaz,
a casa dos Sás,
a rogo do Vaz,
com o Monsaraz.

– Pois leva o cabaz…
Se o preço for capaz,
compra-me lá um goraz,
e se as uvas não são más
traz um quilo do Ferraz.

– E isto quem lho traz,
senhora tão sagaz?
Não hei-de andar
para diante e para trás.

– Dá ao primeiro machacaz
que não seja ladravaz.

– Se vires o Tomás
que foi capataz
da Companhia do Gás,
que mande a aguarrás.
Pregunta-lhe, aliás,
se já tem os alvarás…

– À senhora nunca agrada o que se faz…

– Eu bem sei que és perspicaz,
resolve lá como te apraz,
mas não te ponhas a ouvir os sabiás,
de maluqueiras tenho assaz.

– Vai em paz.

Aquilino Ribeiro



Lido no manual Português para Todos 1, de Hélder Júlio Ferreira Montero e Frederico João Pereira Zagalo. Luso-Española de Ediciones.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Ferreira Gullar - Uma voz

 



UMA VOZ

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando.

Ferreira Gullar


Dentro da noite veloz (1975)



(Fotografia de Roge Ferreira)


segunda-feira, 13 de maio de 2024

Daniel Filipe - Romance de Tomasinho Cara-Feia

 


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA 

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destinho.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará!


Daniel Filipe


(Ilha da Boavista, Cabo Verde, 1925 - 1964)    Mais dados em &Escritas.org




(Fotografia de Ilhéu Raso, Baleia-de-bossa (Megaptera novaeangliae))



segunda-feira, 6 de maio de 2024

Mário de Andrade - Quarenta anos



QUARENTA ANOS

A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

Mário de Andrade

Poesias completas, vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 437-438. [1933]

Retrato de Mário de Andrade, 1927 Lasar Segall


quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sophia de Mello Breyner Andresen - As pessoas sensíveis

 

AS PESSOAS SENSÍVEIS 

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão.”

Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen


De Livro sexto, 1962