Fotografia de Luisa Cortesão |
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector (em russo: Хая Пинхасовна Лиспектор; Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977).
10 de agosto
Uma história de tanto amor
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os
anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um
amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder
a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a
sua arte.
Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra
Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das
asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de
doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia.
E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa
tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a
Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio
porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias
que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe
ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados
assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe
dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café –
e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de
serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de
serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e
grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria
espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo
das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordálas
seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrirlhes
o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso
quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo
galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava: – Mas é o
galo, que é um nervoso, quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê!
O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue! Um dia a família resolveu levar a
menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não
existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou-lhe: – Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao
amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade.
Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos
sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de
boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha.
Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe.
– Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim
dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma
pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre
fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhoua
num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões
de tijolos das fazendas das Minas Gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte
de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos
tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a
menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser
querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico: era o amor de
quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas
soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter
uma presciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha
é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu
Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase
físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do
que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão
que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o
sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser
feito para amar até que se tornou moça e havia os homens
A descoberta do mundo (1984)