quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

A pessoa sem nome (Duarte Paiva)

Fotografia de Rodrigo Soldon Souza


A PESSOA SEM NOME

Na minha cidade natal nos Açores, havia uma pessoa sem-abrigo, quando ainda era eu criança e passava o tempo a correr na rua com o meu cão amarelo de nome "Jáki". Esse senhor era a única pessoa em situação de sem-abrigo, um gigante de barbas e vestes compridas até aos pés, que vagueava pelas ruas sozinho em silêncio. A maior marca de imagem desta pessoa era um bastão que o apoiava no andar, como se de um velho mago se tratasse. Ele sempre me fascinou durante a minha infância, mas ninguém me dizia nada sobre ele e eu nada sabia dele. Eu devia ter oito anos, ou talvez nove ou dez, na realidade não sei bem situar-me no tempo.

Naquela altura, em criança, não percebia bem estas coisas da pobreza e da riqueza. Sabia que os meus vizinhos da frente, do lado e do outro lado eram todos ricos, pois tinham umas casas grandes, ao contrário da minha. Sabia que as crianças do orfanato perto da minha casa eram pobres, pois não tinham família e vestiam roupa usada. E depois havia esse homem que nem casa nem nome tinha. Na minha pouca sabedoria de criança, decidi que o queria ajudar! Assim fui ter com a minha mãe e disse:

- "Mãe quero ajudar aquele senhor."

- "Filho, podes levar comida."

Comida. Isso mesmo! Levar comida, pois ele precisa de comer, deve ter fome! Enchi um saco de pão e levei. Corri ferozmente pela rua como se tivesse encontrado o sentido da vida. Quando lá cheguei, parei e fiquei a olhar para ele, como um anão olha para um gigante. O sentido da vida estava assim mais para o congelado.

- Que queres, disse ele num tom rouco e forte.

- Aah, trago comida...

- É pão?

- Sim...

- Então deixa aí (no mesmo tom rouco e com o olhar desviado).

Deixei o saco de pão e corri para casa como se tivesse ganho um bilhete de regresso à realidade. Qual sentido da vida? Perdi-o logo! O pior é que não tinha percebido nada daquilo e no caminho vim a pensar que aquele homem não queria pão. Essa era uma imagem tão forte na minha cabeça que rapidamente se transformou numa pergunta: "Mas o que quereria ele?". No fim de tudo isto e mais do que tudo, mais do que ajudá-lo, mais do que sentir que fui útil, mais do que qualquer grandeza, senti que o humilhei, dando-lhe aquele pão seco.

Não sei quando vi essa pessoa pela última vez. Talvez dias depois, talvez nunca mais, mas o sentimento acompanhou-me ao longo da minha vida até ao dia em que escrevo este texto. É muito fácil humilharmos as pessoas mesmo com a melhor vitalidade solidária. Mas não há nenhuma dignidade na pobreza nem numa caridade desempoderadora (a chamada "caridadezinha"), ainda muito presente em nós e nas nossas organizações. Os pobres são como que adotados nesta caridade que lhes retira, muitas vezes, qualquer réstia de identidade. Por vezes nem o nome sabemos e se o sabemos pronunciamos com um tom condescendente e infantil. E quando alguém almeja mais do que uma sopa e um canto para dormir, é pobre e mal-agradecido, dizemos com facilidade.

Esta expressão ainda ecoa bem na nossa consciência coletiva enquanto sociedade e quando confrontados com pessoas que, apesar da sua situação de pobreza, ainda querem ser alguém, querem ter escolhas e mostram que tem desejos, como eu e o leitor. É bom ter desejos e sonhos, mostrar que os temos e lutar por eles. É bem mais importante isso do que o pão seco que eu pensava dar àquele homem todos os dias. É isso que nos tira da pobreza.

Então, e por fim, respondendo à questão "o que quereria ele?", encontrei a resposta perguntando a mim mesmo "o que quero eu para mim".

Duarte Paiva

Fundador da Associação Conversa Amiga


Publicado a 18 de setembro de 2015 aqui