quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Não tenho telemóvel (Henrique Manuel Bento Fialho)



Não tenho telemóvel. Carrego o fardo de ter de transportar uma amostra, por a isso ser obrigado pela empresa para a qual trabalho. Material rasco, felizmente. Quando o digo, há quem se espante. Como consegues? A minha dúvida é precisamente a oposta: como conseguem as pessoas andar com o mundo no bolso? Custa-me tanto andar neste mundo que se me torna dificílimo perceber como pode alguém apreciar trazer o mundo tão próximo. Depois vêm-me com os filhos, a eterna desculpa para tudo quanto seja não vivermos a nossa vida. Como faço com os filhos? Enfim, faço como os meus pais faziam. Não me lembro de os meus pais terem precisado de telemóveis para me educarem, até para me controlarem. A geração dos meus filhos vai ser a primeira no mundo para a qual os telemóveis foram uma ferramenta educacional sem a qual pais e mães não saberiam cumprir o seu papel de pais e mães. O telemóvel oferece uma ilusão de controlo sobre os filhos que é contraproducente. Quando mais os julgamos sob controlo, já eles se perderam num mundo que não podemos dominar: aquele que vem dentro dos telemóveis.

Há quem se sinta mais próximo dos filhos por em casa todos terem telemóvel. As minhas filhas oferecem-me amiúde um excelente exemplo dessa proximidade, quando se sentam na sala agarradas aos telemóveis. Podíamos falar, mas não falamos. Elas falam com os telemóveis, jogam com os telemóveis, brincam com os telemóveis, ausentam-se pelos telemóveis adentro deixando um vazio na sala de estar que se torna difícil de superar. Consigo imaginar uma família inteira, todos sentados no mesmo sofá, a comunicarem uns com os outros através dos telemóveis. A enviarem bonequinhos uns para os outros, vídeos curiosos e cenas assim, sem partilharem uma palavra oral, sem escutarem a voz uns dos outros, comunicando por intermédio de algo que deveria ser estranho ao seu corpo não tivesse sido aceite como uma extensão do mesmo.

A relação das pessoas com os telemóveis atemoriza-me, a relação que observo. Por exemplo, quando vou a um concerto e reparo que, em vez de estarem com olhos e ouvidos abertos para o que se passa à sua volta, algumas pessoas estão de braços levantados a ver o concerto através do monitor dos seus telemóveis, gravando, fotografando, momentos que mais tarde experienciarão como se os tivessem experienciado ao vivo. A ideia de concerto ao vivo está prestes a morrer, poucos serão os que dentro em breve estarão dispostos a sentir ao vivo. Preferem sentir ao morto, através dos seus inalienáveis telemóveis. Também observo frequentemente pessoas sentadas ao lado umas das outras, por exemplo nas esplanadas dos cafés ou nos restaurantes, permanentemente fixadas nos telemóveis. Quase não falam, quase não se olham nos olhos, não se observam nem observam os outros como eu as observo. A opção delas é imergirem nos screens dos telemóveis, afagando-os com os dedos como não afagariam as mãos de quem está ali, ao lado delas.

Há exemplos verdadeiramente chocantes deste tipo de relação com o objecto mais querido dos portugueses na actualidade. Notícia de Janeiro: «Em dezembro de 2017, o número de utilizadores de smartphones em Portugal situava-se perto dos 6,8 milhões, o que representa cerca de três quartos do total de utilizadores de telemóvel». Depois temos as selfies com suicídios em pano de fundo, temos obras de arte destruídas por causa da fotografia ideal, temos invasões à privacidade sucessivas e indiscriminadas... Dir-me-ão que só estou a ver o lado mau, que se trata de gente estúpida, que há muita denúncia pertinente que não seria possível sem as gravações em directo, sem o registo de imagens, sem isto e sem aquilo que os telemóveis ajudam a resolver... Não o discuto. Os portugueses podem não ter muita coisa, mas têm de ter um smartphone. É-lhes imprescindível. Para quê conversar com o outro quando tudo quanto podemos saber está ali, à mão de semear, no meu smartphone?

Julgo que os smartphones exercem sobre as pessoas na actualidade a mesma sensação que os revólveres exerciam sobre os pistoleiros no faroeste, uma sensação de poder, de autodomínio, de segurança. Precisas de saber onde encontrar um chaveiro? O teu smartphone indicar-te-á aquele que está mais perto. Precisas de saber o caminho para Amiais de Baixo? O teu smartphone levar-te-á ao destino pretendido. Vão-se a surpresa, o acaso, o belo acidente, vai-se o contacto com o outro, a entreajuda, perde-se definitivamente algo próprio das relações humanas e algo essencial ao ser: estar aberto ao desconhecido. Os smartphones como que nos usurpam o desconhecido, fecham-lhe a porta, encerram-nos numa redoma obtusa que é a de quem fica a temer tudo quanto desconheça, todas as equações que o seu smartphone não saiba resolver. Vai-se a capacidade de problematizar, de reflectir, de criticar, o mundo fica mais plano, menos duvidoso, para tudo parece haver uma resposta pronta, automática. O espanto cinge-se à imagem fantástica, nunca vista, enfim, a todo o tipo de pornografia, não necessariamente sexual, que circula na rede. As distopias do século passado realizam-se em pleno, deixam de ser distopias, passam a ser, quando muito, alegorias frágeis de uma realidade em vigor: a humanidade manipulada por tiranos aos quais adere voluntariamente, os tiranos da comunicação, das novas tecnologias.

Repare-se como as pessoas reagem aos exemplos oferecidos por uma rede social como o Facebook. Noutros tempos, um tipo como Mark Zuckerberg já tinha sido alvo de atentados pelos revolucionários deste mundo, aqueles para quem a liberdade individual não pode ser posta em causa, é um bem absoluto, aqueles para quem os dados pessoais são elementos sagrados de uma identidade impartilhável. Pois bem, os algoritmos fazem milagres. O Facebook pode censurar nus e aceitar decapitações, ninguém sai. Protestam, mandam bocas, mas mantêm-se todos na rede como insectos na teia da aranha. Os tipos mais críticos, ditos mais marginais, aparentemente mais radicais deste mundo e do outro, arrastam-se pelo Facebook sem pio. Não é nada com eles, desde que o Facebook lhes sirva os intentos autopromocionais. Desde que a rede os ampare no esgoto para o qual não param de escarrar. Ou seja, andam a esbracejar no próprio escarro dando ares de pureza e higiene. O Facebook pode partilhar dados dos seus utilizadores para usufruto de empresas e partidos políticos, mas nada disso ameaça a democracia. É tudo por uma boa causa, a democratização da opinião pública. A democracia é um tipo saber destas coisas e manter-se no Facebook, como o escravo que prefere ficar escravo a ter que lidar com uma coisa que nunca conheceu: a liberdade.

hmbf

No seu blogue antologia do esquecimento  (31-8-2018)