quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Onde se fala de felicidade (Manuel António Pina)




ONDE SE FALA DE FELICIDADE

   Talvez, quem sabe?, depois da morte continuemos a sonhar que vivemos. Talvez a vida seja um sonho, como dizem os budistas, ou talvez seja fogo e combustão como em algumas teologias cristãs. De qualquer forma, a crer no velho tango da minha infância (estou certo que há-de haver também um fado sobre o assunto), hay que vivirla. Com alegria, e reconhecimento, ou só com resignação, não excluindo sentimentos menos convencionais.
   Ontem de manhã, discutia-se na TSF a felicidade. Parece que os portugueses não são felizes, e tentava perceber-se porquê. As discussões inconclusivas são as mais interessantes, sobretudo quando, como era o meu caso, se vem a conduzir cansadamente sob nevoeiro, ao longo de uma auto-estrada interminável e irreal.
   Numa coisa parecia estar toda a gente de acordo: o PIB não é um índice fiável de felicidade. Eu diria que o índice mais fiável de felicidade é não se perguntar se se é feliz. Quando se pergunta já o caldo da felicidade está entornado. O que quer dizer que, se formos felizes, provavelmente não o saberemos. Mas como sermos felizes sem o saber? À mesma hora, na Antena 2, a Filarmónica de Berlim tocava a Sinfonia Italiana de Mendelssohn, e pareceu-me uma boa resposta. Uma resposta, como a vida, a pergunta nenhuma.

Manuel António Pina

Publicado no JN, 21/11/2007


Podemos reler esta e muitas outras crónicas de Manuel António Pina, com todo o prazer, no livro Crónica, saudade da literatura (última edição: 2014). Seiscentas e tal páginas. Uma boa compra para o Dia do Livro, ou mesmo agora.


Sinopse
A modéstia levava-o a (des)considerar as crónicas como uma servidão diária que afirmava com humor só aceitar para alimentar a legião de gatos que tinha em casa e que só serviriam, como tudo o que é jornal e como diziam os velhos tipógrafos do JN num dito que ele tantas vezes citava, para embrulhar peixe no dia seguinte. Ou seja, as crónicas, até pelo seu registo diarístico (jornalístico), não possuiriam nenhum valor literário, seriam feitas como tudo o mais mas mais do que tudo «da matéria da morte e do esquecimento», anacrónicas fora da sua efémera duração, e como tal constituiriam uma dimensão menor, extraliterária, da sua obra. E no entanto, pelas suas características, essas crónicas fazem plenamente parte, de pleno direito, da obra literária de Manuel António Pina. Se ele definia a sua poesia, por complexas razões de poética que não cabe aqui explicar, como «saudade da prosa», as suas crónicas jornalísticas podem definir-se, de certo modo determinante da sua popularidade, como saudade da literatura.

A presente antologia, organizada por Sousa Dias, reúne as melhores crónicas de Manuel António Pina, de 1984 a 2012. As palavras dessas crónicas, e sobretudo o espírito dessas palavras que uma multidão de seguidores fazia suas nas suas anónimas indignações sociais, ficarão durante muito tempo a reverberar na memória dos leitores agora desamparados dessa voz.

(Assírio & Alvim)