Autorretrato de Mário Eloy (c. 1936-39)
Mais um trecho do livro A memória das palavras do escritor e poeta português José Gomes Ferreira. Já foi publicado anteriormente este.
Tanto quanto desaprecio as anedotas – tabaco mastigado em muitas salivas – sempre me entusiasmaram os «ditos» individuais, fluentes, concisos, indesligáveis das bocas onde nasceram. (Cá está o aristocrata a deitar a cabecinha de fora.) Ah! Já me esquecia da virtude maior: a espontaneidade. A famosa espontaneidade que nas artes escritas se falsifica no segredo dos laboratórios pacientes de cada um, mas que na arte menor dos comentários de improviso, embora não faltem truques e receitas para a simulação, obedecem em geral a um ritmo paralelo ao engendrar da poesia no subconsciente. E quando por fim irrompem, iluminados de inteligência, até parecem criados de propósito para a síntese daquele mesmo instante – resumo límpido de mil complicações e enredos numa única flor de cheiro tão simples. Enquanto escrevia estas palavras, pensava em alguém. Para ser exacto, em Mário Eloy. Não no Mário Eloy definitivamente fixado na pintura, numa aposta de vida ou de morte, mas no outro, com quem convivi no acaso dos encontrões do Chiado e no amontoar boémio das mesas de café onde os artistas, em férias de horas breves, se entretêm a trocar destinos, os arquitectos a construírem contos, os poetas a modelarem bustos com miolo de pão, os romancistas a desenharem mulheres nuas nos veios dos mármores, os escultores a comporem poemas. Em suma: a busca eterna da compensação dos pendores desprezados. Porque esses seres estranhos, vindos ao mundo para se exprimirem e denunciarem o que se passa na ilha de solidão de cada homem, não surgem assim, já concluídos e apurados, como os vemos nas selectas e nos museus. Quase todos trazem, desde a infância, a fatal nebulosa de mil tendências por definir, numa confusão de melodias, palavras, cores, linhas, formas, gritos, dissonâncias... Só pouco a pouco, a tactear, descobrem os mágicos caminhos próprios no nevoeiro de fogo. E então, este contorna-se pintor. Aquele novelista. Estoutro, dramaturgo. Se bem que estas fixações, claro, não impeçam o poeta Tal de continuar a imaginar-se um grande pintor frustrado e o músico Qualquer Coisa não deixe de tecer serenatas de versos clandestinos à boa da Lua que os homens resolveram agora fuzilar com foguetões.
Resumindo: no nosso caso, Mário Eloy gelou pintor. Mas presumo que, para o entendermos bem, nunca poderemos prescindir da análise dos seus outros talentos secundários, sobretudo o de comediante, provado em público com a criação do Bobo da Ribeirinha. A mim, pelo menos, ninguém me tira da ideia que o Mário Eloy, actor de si mesmo, representou toda a vida, representou sempre, até parafraseando Fernando Pessoa, aquilo que deveras era.
Além disso – e aqui retomo o fio inicial – possuía o dom destacável (aliás comum a vários na época) do julgamento rápido das coisas da Arte e do mundo, vazado em fórmulas de originalidade subtil, a que o encanto de dizer emprestava não sei que suspeita de profundidade intuitiva. (Uma vez, por exemplo, no fim de ler um artigo meu, rematou com convicção de flecha a acertar: você escreve redondo... E eu, durante algum tempo, andei de facto convencido de que escrevia redondo!)
Mas o seu dito obra-prima estava reservado para um flibusteiro, representante dessa incrível falange de impingidores de odes e sonetos que, mal apanham alguém desprecavido, encostam-no à parede, ajeitam-no bem e zás! – ouvem-se, os miseráveis!, ouvem-se à nossa custa, felizes de poderem reflectir-se num espelho qualquer, mesmo bocejante.
Defesa? Esta, apenas: atufar os bolsos de pêlo do mesmo cão e replicar olho por olho, sonetaço por sonetaço, ode por ode. Ou então, virar os ouvidos para dentro e escutar a música da imaginação, com o sorriso celestial da surdez provisória. A que Mário Eloy juntava ainda esta outra arma de vantagem táctica: um estrabismo providencial que o ajudava à ausência de se fingir pre-sente. Mas sem embargo não escapava. Como não escapou naquela tarde histórica em que um novelista falhado, de rolo de papel em riste, veio instalar-se na cadeira em frente ali na sua mesinha habitual da Brasileira, voz de comando com olhos súplices:
– Vou ler-lhe esta novela. Interessa-me a sua opinião.
E pumba! Durante vinte minutos, leu, soletrou, vibrou, declamou, arrebatou, enfastiou...
Deteve-se, por fim, a limpar o suor, interrogativo:
– Então Que tal a acha?
E a resposta tombou luminosa, breve (afinal maior do que ele supunha), a abranger quase todos os livros da pátria:
– Desnecessária.
E saiu do café no seu andar de desengonço...
Agora viria talvez a talhe de foice discorrer acerca da necessidade da arte com a respectiva pitadinha de filosofia em quarta mão – tão epocal e pedante. Mas prefiro concluir com simplicidade que acusar uma pseudo-obra-de arte de desnecessária me parece mais grave do que considerá-la medíocre ou má.
Desnecessária quer dizer desligada de qualquer lume pessoal ou colec¬tivo, sem pontes para o mistério nem missão social a cumprir.
Espécie de rosa de pétalas de pano que os homens teimas sem em colar à seiva duma planta que terminantemente se recusasse a dar flor. Por outro lado, e em compensação, a necessidade estética toma às vezes tal fúria de força impetuosa que chega a transformar as coisas em belas ou, pelo menos, a acendê-las duma comoção parecida com a beleza.
O que justamente senti nessa tarde de penumbra de há muitos anos, quando encontrei perto duma montra da Rua da Palma aquela mulher de xaile a contemplar uma horrenda estatueta do «Vendedor de jornais» – boneco popular de fábrica em série, pintado de verde, com cabelos verdes, boca verde, pés verdes...
Mas se vissem o êxtase de sortilégio da pobre velhota presa a tão imprevista necessidade de levar para casa, de qualquer maneira, embrulhado no xaile, aquele trambolho de pesadelo!
– Quanto custa? – perguntou-me. (Coitada, não sabia ler.)
E eu lá decifrei, com esforço de atentar bem, o preço marcado na etiqueta:
– Tantos escudos.
Sorriu-me, por agradecimento distraído, remexeu os dedos no bolsilho do avental, contou as moedas e, num tropeçar trôpego, entrou na loja a medo.
Anoitecia devagarinho.
E ainda a lembrar-me do sorriso de ternura da pobre mulher de xaile, e a gozar aquele momento de transe, tão fundo como matar a fome, lancei medrosamente o último olhar para a estatueta.
Oh! Era bela – garanto-vos.
José Gomes Ferreira
A memória das palavras - ou o gosto de falar de mim (1965)