Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
José Gomes Ferreira
(José Gomes Ferreira, 1900-1985)
"Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da Rua Marquês de
Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta
autêntico, há tanto procurada. À terceira tentativa, para uma série de
poesias que eu intitulava Poemas de Reincidência, escrevi dum
jacto e quase sem emendas o poema 'Viver sempre também cansa'. Mostrei-o
ao Carlos Queiroz, então meu amigo de todos os dias, que, sem me
consultar (e se consultasse daria logo o meu consentimento, claro), o
enviou a João Gaspar Simões. Pouco depois aparecia na Presença. E assim
entrei no âmbito da chamada Poesia Modernista. A propósito, devo dizer
que nunca fiz parte do grupo presencista. Como nunca pertenci a qualquer
grupo saudosista . Ou à Seara Nova. Voltemos à noite de 8 de Maio de
1931 e à poesia de 'Viver sempre também cansa', onde já havia - coisa
insólita na época! - uma referência a Mussolini...Desde então senti que
surgia em mim a expressão do poeta verdadeiro. E para marcar bem, para
separar bem o novo do antigo poeta, acrescentei sub-repticiamente ao
Gomes Ferreira, com que assinara os 'Lírios do Monte' e as duas edições
de 'Longe', o meu nome próprio: José! Passei a bagatela, reputo eu de
valor psicológico importantíssimo. E, assim, num novelo terrível de
ganhar a vida com artigos diversos, crónicas anedóticas, contos e
contecos, anúncios das cintas Pompadour, publicidade, traduções de
fitas, etc., iniciei a minha carreira de poeta, a que mais tarde chamei
de poeta militante."
(Lido em Absorto)