Às vezes é bom ler crónicas do antigamente, nem que sejam dois anos escassos:
“É a falta de cultura, estúpido!”
é uma crónica de Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso em julho de 2012.
É A FALTA DE CULTURA, ESTÚPIDO!
Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura, quase toda velha e sem sucessores.
Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente. Nós não somos muito diferentes disto. No meio do anedotário que converteria um homem mais inteligente num homem trágico, convém não esquecer o que nos separa, exactamente, do Relvas. Pouco. O dito não é um espécime isolado, um pobre diabo animado de força e disposição para fazer negócios e trepar na vida, que entrou em associações e cambalachos, comprou um curso superior e, de um modo geral, se auto-instituiu em conselheiro do rei. Já vimos isto.
Nunca vimos isto nesta escala, porque na 25ª hora da tragédia nacional, quando Portugal se confronta com a humilhação da venda dos bens preciosos (os famosos activos) aos colonizados de antanho e seus amigos chineses, o que o país tem para mostrar como elite é pouco. Nada distingue hoje a burguesia do proletariado. Consomem as mesmas revistas do coração, lêem a mesma má literatura (que passa por literatura), vêem a mesma televisão, comovem-se com as mesmas distracções. Uns são ricos, outros pobres.
A elite portuguesa nunca foi estelar, e entre a expulsão dos judeus e a perseguição aos jesuítas, dispersámos a inteligência e adoptámos uma apatia interrompida por acasos históricos que geraram alguns estrangeirados ou exilados cultos permanentemente amargos e desesperados com a pátria (Eça, Sena) e alguns heróis isolados ou desconhecidos (Pessoa, O′Neill).
Em “Memorial do Convento”, Saramago dá-nos um retrato da estupidez dos reis mas exalta romanticamente o povo. Todos os artistas comunistas o fizeram, num tempo em que o partido comunista tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe que, aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare. Cunhal traduzindo o “Rei Lear” de um lado, Relvas posando nas fotografias ao lado da bandeira do outro. Relvas nem personagem de Lobo Antunes, o descritor da tristeza pós-colonial, chega a ser. É um subproduto de telenovela. O tempo dos chefes cultos acabou, e se serve de consolação, não acabou apenas em Portugal.
A cultura de massas ganhou. No mundo pop, multimédia, inculto e narcisista, em que cada estúpido é o busto de si mesmo, a burguesia e o lúmpen distinguem-se na capacidade de fazer dinheiro. Acumular capital. O dinheiro, as discussões em volta do dinheiro acentuadas pela falta de dinheiro, fizeram do proletariado (e desse híbrido chamado classe média) uma massa informe de consumidores que votam. E que consomem democracia, os direitos fundamentais, como consomem televisão, pela imagem. Sócrates e o Armani, Passos Coelho e a voz de festival da canção. Nós, e quando digo nós digo o jornalismo na sua decadência e euforia suicidaria, criámos estas criaturas. Os Relvas, os Seguros, os Passos Coelhos, os amigos deles.
O jornalismo, aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culture em oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o ‘mercado’, tal como o jornalista, sujeito ao raring das audiências e dos comentários online.
A brigada iletrada, como lhe chama Martin Amis, venceu. Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, “Invictus”, conta que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram “Júlio César” ou “Macbeth”, “Hamlet” ou “Ricardo III” que os acompanharam. Não é um preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a história, tão importante como a física ou a álgebra. A grande mostra da Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos é Shakespeare (no British Museum) e não um dono de supermercados ou futebolista.
Os ‘heróis’ portugueses descrevem-nos. E descrevem a nossa ignorância Passos Coelho é fotografado à entrada do La Féria ou do casino. Um dono de supermercados ou um esperto ministro reformado são os reservatórios do pensamento nacional. Uma artista plástica é incensada não pela obra mas pela capacidade de “agradar ao mercado”, transformando-se, pela manifesta ausência de candidatos, em artista oficial do regime. É assim.
Não teria de ser assim. Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura quase toda velha e sem sucessores. Não estamos sós. Por esse mundo fora, a arte tornou-se cópia e reprodução (daí a predominância dos grandes copiadores de coisas, os chineses), tornou-se matéria tornou-se consumo. Como bem disse Vargas Llosa, em vez de discutirmos ideias discutimos comida. A gastronomia é uma nova filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de Cervantes e de Ortega Y Gasset.
Clara Ferreira Alves
Clara Ferreira Alves
(Expresso, 21 de Julho de 2012 )
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Clara Ferreira Alves e a falta de cultura
Posted on Julho 24, 2012 by André Azevedo Alves
É a falta de cultura. Por António Araújo.
A autora de Pluma Caprichosa afirma textualmente que Cunhal, «aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare». Como é que Clara Ferreira Alves cometeu este erro de palmatória, uma calinada de dimensões tão monumentais? É, de facto, um lapso tremendo e lamentável. Mas erros, mesmo erros grosseiros como este, acontecem aos melhores. E Clara Ferreira Alves integra indiscutivelmente o grupo dos nossos melhores. Pertence, por mérito próprio, à escassa high culture portuguesa. Sendo brutal e colossal, o seu inacreditável equívoco em nada afecta a admiração que esta jornalista nos deve merecer. Em todo o caso, nós, os que a admiramos com sinceridade e até carinho, ficámos um pouco tristes com uma mancha cultural desta gravidade. Para mais, numa crónica que tem por título «É a falta de cultura, estúpido».
(Este é o último parágrafo do texto completo escrito por António Araújo no blogue Malomil)