Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeitara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.
O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
"Caramba", disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, "é à segoviana!"
"Mas não lhe pões o dente", cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
"É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno."
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:
"Assar-lhe até a memória."
Primeiro capítulo do romance Trabalhos e paixões de Benito Prada (1993)
Sobre Fernando Assis Pacheco (Coimbra, 1937-Lisboa, 1995)
Natural de Coimbra, Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco, licenciado em Filologia Germânica, jornalista fundador de O Jornal e da Visão, escritor da auto-ironia, que sobre "Um tal Fernando Assis Pacheco" escreveu "Vivo com ele há anos suficientes / para poder dizer que o reconheceria / num dia de Novembro no meio da bruma / é como uma pessoa de família." Num dia de Novembro seria surpreendido pela "morte merdeira / coisa ruim de cinza e névoa e cinza". (Fonte)