Foi exactamente durante o jantar anual da empresa que Valter teve a sensação de que era seguido. Na altura do discurso final. Falava o doutor Raimondi, quando a sombra passou veloz, recortando-se por instantes no fundo da sala. Valter sentiu um arrepio súbito, ergueu-se de repente e, sem esperar o fim do arrazoado e as palmas consequentes, saiu pela porta fora entre a estranheza dos colegas.
Na rua olhou em volta. Uma rua calma, iluminada, burguêsmente nocturna, sem tragédias à vista. Isso deu-lhe um certo alívio. Afinal fora apenas impressão sua, uma sombra que lhe parecera, talvez só a ele, ser mais do que uma sombra a segui-lo.
Foi andando devagar pelo passeio, acendeu um cigarro e olhou uma montra de artigos para caçador, admirando um magnífico tigre que, em posição de rosnido feroz, propagandeava uma marca de cartuchos para assassinar coelhos. E, de repente, aquela coisa empalhada olhou para ele e a sombra que os spots atiravam para o fundo da loja pareceu avançar.
Valter deu um passo atrás, em pânico, tropeçando numa jovem que lhe sorriu, agradável. Pediu uma desculpa entaramelada, quase engolindo o cigarro, engasgou-se, cuspiu e caminhou em frente, apressado.
Não podia ser. Aquilo não tinha lógica. Como diabo um tigre empalhado... Evidentemente, o que ele estava era cansado.
Abrandou o passo, aquecido, pelo neon dos Grandes Armazéns Bulora.
As pessoas passavam, normais, apressadas umas, outras escorregando lentamente até ao tempo de ir para casa, ora vermelhas, ora azuis, ora amarelas, mas todas confortàvelmente familiares, entrando e saindo do neon que escorria pelo passeio.
Atravessou a rua, um pouco incerto no caminho a seguir, quase caindo em frente de um carro que buzinou, furioso. Por momentos sentiu-se tapado por aquela sombra ensurdecedora. Saltou, num arranco, para o passeio do outro lado.
Ficou a olhar o carro que desaparecia na esquina e outros que iam passando num zumbido de escapes em liberdade nocturna, até se sentir mais calmo, mais capaz de saber onde estava. Na rua, claro, a caminho de casa.
Acendeu outro cigarro e continuou. Logo ali à frente o RODEO, um barzinho seu conhecido. Entrou, na ânsia de uma bebida e de um repouso temporário. Pediu um gin-tonic duplo com bastante gelo, a noite estava mesmo quente. Foi bebendo lentamente, à procura de qualquer justificação para aquilo. Ao olhar para a porta, viu-a passar, viu-a com nitidez, vibrante e rápida, deixando o ar a oscilar como se fosse água. Acabou o gin e pediu outro, que enguliu de seguida. Não, aquilo não era nada, só cansaço.
Pagou e saiu. Procurou um táxi. Um táxi não, era fechado, melhor ir a pé. Queria chegar a casa, queria descansar. Precisava de chegar a casa.
Começou a andar, cada vez mais depressa. E viu-a. Lá estava, naquele vão de escada. Apertou o passo, mas ela chegou primeiro à esquina.
Na esquina olhou, atento. Era a sua rua, o prédio ficava ali em baixo, acolhedor.
Ela continuava, uma sombra escondida na sombra, a olhá-lo do outro lado da rua.
Começou a correr. Da lado de lá via-a deslizar de porta em porta, de escuro em escuro, sempre a acompanhá-lo, silenciosa.
Ia começar a gritar quando reparou que estava à porta de casa. Entrou no edifício, esbaforido mas aliviado. Olhou em volta. Não a viu.
- Boas-noites, senhor Valter. Sente-se mal? - interessou-se o Josué porteiro de noite, com uma solicitude matreira.
- Boas noites, Josué. Não é nada. Apenas cansaço. Venho do jantar anual lá do emprego. Com patrões e tudo, sabe como é.
- Pois. Essas coisas cansam - concordou o Josué, julgando saber. Cansam mesmo, senhor Valter.
- Até amanhã, Josué.
- Até amanhã, senhor Valter.
Entrou no elevador com a sensação de se ter libertado de um acontecimento atroz.
Saiu no décimo andar. O corredor estava calmo, brilhante de luz e repouso. Abriu a porta do apartamento e entrou.
Foi até ao bar, preparou apressado um gin saudávelmente triplo sem tónica e, sentando-se confortável no sofá, saboreou-o com um prazer todo novo, com lentidão, com luxo. Um bom sono e amanhã tudo seria apenas um motivo para sorrir. E se não fosse?
Bocejou, sentindo-se realmente cansado. Acendeu um cigarro, bebeu o resto do gín num arrepio de gozo, pousou o copo e levantou-se.
Dirigiu-se para o quarto e abriu a porta.
A sombra ergueu-se da cama e avançou para ele, de braços abertos.
- Querido! Vieste cedo...
Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic (1973)