sexta-feira, 14 de junho de 2019

Catorze de junho (José Saramago)



CATORZE DE JUNHO

Cerremos esta porta.
Devagar, devagar, as roupas caiam
Como de si mesmos se despiam deuses,
E nós o somos, por tão humanos sermos.
É quanto nos foi dado: nada.
Não digamos palavras, suspiremos apenas
Porque o tempo nos olha.
Alguém terá criado antes de ti o sol,
E a lua, e o cometa, o negro espaço,
As estrelas infinitas.
Se juntos, que faremos? O mundo seja,
Como um barco no mar, ou pão na mesa,
Ou rumoroso leito.
Não se afastou o tempo. Assiste e quer.
É já pergunta o seu olhar agudo
À primeira palavra que dizemos:
Tudo.

José Saramago



quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Subiste à glória pela escada abaixo..." (Fernando Pessoa / Alvaro de Campos)

Fotografia de Vi


Subiste à glória pela escada abaixo.
Paradoxo? Não: a realidade.
O paradoxo é o que é palavras;
A realidade é o que és.
Subiste porque desceste.
Está bem.
Amanhã talvez eu faça a mesma coisa.
Por ora, se calhar, invejo-te,
Não sei se te invejo a vitória,
Não sei se te invejo o consegui-la,
Mas realmente creio que te a invejo...
Sempre é vitória...
Façam um embrulho de mim
E depois deitem-me ao rio.
E não esqueçam o «se calhar» quando lá me deitarem.
Isso é importante.
Não esqueçam o «se calhar».
Isso é que é importante.
Porque tudo é se calhar...

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

Poesia (Álvaro de Campos). Obras de Fernando Pessoa. Edição de Teresa Rita Lopes. Assírio & Alvim, Março de 2002




segunda-feira, 10 de junho de 2019

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios (Bocage)



A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage



Posto me tem Fortuna em tal estado (Luís de Camões)

Alciato: Fortuna


Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís de Camões


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Para o Ruy Belo (Joaquim Manuel Magalhães)

O poeta Ruy Belo (1933 - 1978)


Duas versões de um mesmo poema de Joaquim Manuel Magalhães: a publicada originalmente em segredos, sebes, aluviões, e a reescrita anos depois, como fez com grande parte da sua obra já publicada. Essas novas versões são consideradas definitivas por Magalhães.



PARA O RUY BELO

1.

Levanto-me para a cruz de claridade da janela.
Vejo afastar-se ao nevoeiro o corpo.
Pelo mais improvável dos caminhos
a natureza responde-me:
dentre os ramos das flores caídas.


A esperança de sobreviver ao inverno que vem
estende-me na areia deste verão mortal.
Uma rajada de cinza bate no crepúsculo
contra os rubros nimbos sobre um lago.


2.

Não sei bem quem morre quando morrem os mortos.
Os guizos dos outros voltados sobre nós
apostam se valemos bastante a despedida.
As supostas mágoas somam dividendos
aos tempos vários e felizes em que permanecemos.
A morte somos nós a calcular a palmo
o choro organizado e o que vamos fingir a seguir.
O nosso punhal sobrevivente dispara
que também somos, que bom, grandes face ao que morreu.
Na putice das letras morre-se sempre a jeito
para a momentânea maior glória dos vivos.


In segredos, sebes, aluviões. Presença, 1981.

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PARA O RUY BELO

1.

Levanto-me para a cruz de claridade da janela.
Vejo afastar-se ao nevoeiro o corpo.
Pelos mais improváveis dos caminhos
a natureza responde-me:
dentre os ramos das flores caídas
a ironia da sombra sobre o peito deitado.

A esperança de sobreviver ao inverno que vem
estende-me ao sol de areia deste verão mortal.
Uma asa de cinza corre no crepúsculo
branca e difícil contra os rubros
nimbos abatidos sobre o mar.


2.

Não sei bem quem morre quando morrem os mortos.
Os olhares dos outros voltados sobre nós
apostam se valemos bastante a despedida.
As supostas mágoas somam dividendos
aos tempos vários e felizes em que permanecemos.
A morte somos nós a calcular a palmo
o choro organizado e o que vamos fingir a seguir.
O nosso revólver sobrevivente dispara
que também somos, que bom, grandes face ao que morreu.
Na putice das letras morre-se sempre a jeitoh
para a momentânea maior glória dos vivos.


Texto no blogue O melhor amigo




terça-feira, 4 de junho de 2019

Fidelidade (Jorge de Sena)

Fotografia de Rolf Winquist

Jorge de Sena morreu a 4 de junho de 1978 em Santa Bárbara, na Califórnia.


FIDELIDADE

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma.
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

                                 26/8/1956


Jorge de Sena



Do seu livro Fidelidade (1958)



segunda-feira, 3 de junho de 2019

Morreu Agustina Bessa-Luís




"Morreu Agustina Bessa-Luís, o nosso grande “mistério literário”" (Público, 3-06-2019)

"Morreu Agustina Bessa-Luís, a escritora que marcou a nossa literatura" (DN, 3-06-2019)


Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não saberemos onde elas nos podem levar. Hibernam por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor dos sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.

Antes do degelo (2004)

(Record)