sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Almada Negreiros - A sesta




A SESTA

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar. Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir. E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos. E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.

Almada Negreiros



(Leo Gestel - An Amorous Pierrot in the Café)




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Joaquim Cardozo - Poema para a nudez de Ítala Nandi

 


POEMA PARA A NUDEZ DE ÍTALA NANDI  

Ítala Nandi despiu-se
Tirou suas roupas desnecessárias
E não conseguiu ficar nua:
Sua bunda, seus seios minúsculos, sua babaca pequenina,
São as mesmas da primeira nudez em que nasceu.

Apenas ficou lisa
Apenas entrou na periferia
De um corpo nu pintado: de Cranach ou de Balduing.
- Nudez de Eva, a primeira mulher.

Ítala Nandi, porque escondeste
Por tanto tempo a todos nós
Tua santa e secreta nudez?
Tua nudez sagrada
Nudez para ser beijada

Com esse nu, tão assim de superfície
Todo o teu esforço no sentido da arte erótica
Onde a platéia e os atores são os mesmos,
Dás apenas o efeito tátil de pouca penetração

Com essa primeira e indígena nudez
Ítala Nandi, é quando te vestes
Que ficas nua

Joaquim Cardozo

(Recife, 1897 - Olinda, 1978)



(© Foto de Mauro De Blanco. A atriz Ítala Nandi aos 16 anos de idade no seu primeiro ensaio fotográfico. Caxias do Sul (RS). Brasil, 1958.)



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Uma estrofe de Jorge de Sena

 



VI

A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

Jorge de Sena


Estrofe do poema "O beco sem saída, ou em resumo..." do livro Exorcismos (1972)





(Fotografia de Angela, 2005)


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Manuel da Fonseca - Quinta




QUINTA

Bem alto foram os gritos e os braços erguidos,
bem amargas as lágrimas choradas.
E secas as lágrimas estalaram as raivas
nas florestas dos braços aflitos

… A Vida lá vai,
mais amada que ontem, mais desejada que nunca!

Manuel da Fonseca



Lido no blogue Voar fora da asa



(Fotografia de Jorge Cardim: O rio, Mértola, 2017) 


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Hilda Hilst - "Que este amor não me cegue nem me siga.”

 



Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça mais pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Hilda Hilst


(Lido em da luz & da sombra)



(Fotografia de Isadora Picolo)


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Tatiana Faia - antonia

 


antonia

caminhamos pelas montanhas
como se se pudesse regressar do abismo
tu à frente, eu atrás
tu com uma corda às costas
calças curtas, uma camisola de malha
às vezes perdes-te à minha frente no trilho
pelo nevoeiro, o azul
da tua camisola confunde-se
com o cinzento da montanha
e eu chamo o teu nome
um som em perfeita queda
como a água ou a noite descendo
aguçada sobre os penhascos

de repente sei que não é este já
o tempo das revelações
as esquinas que virei em trastevere
tu pensas que é pouco o que resta
e talvez não baste e isto é a sério
eu penso se o pouco que resta
justifica paciência para tanto dano
estas são as pequenas perguntas
e as perguntas certas
os teus lábios fecham-se numa linha
isto é verdade o teu sorriso
vai ficar comigo muito depois
de termos batido a altitude
e regressado aos vales lá em baixo
e voltarmos a ser quem temos sido

mas são perfeitos os círculos que os pássaros
desenham acima dos ciprestes
cujas copas se cobrem agora de neve
e o cheiro do ar e o tilintar do teu cantil
gelado pela neve no bolso da tua mochila
não é bem isto a nossa pequenez
afundando-se na paisagem
os momentos de silêncio mudo
os momentos em que o silêncio
te esgotou e te fez falar demasiado alto
e nunca tão alto que chegasse para conversar

há entre nós duas
o mundo secreto de todos cadernos
e também este verso que agora é teu
gastei muitas folhas e muita tinta
e nenhum espaço que me cabe me conforta
queria ter vivido sem causar dano, antónia
mas até o amor, a alegria, a caneta esquecida num copo
e o papel de parede e a tua tosse enquanto
acendes mais um cigarro e estendes os braços
para abraçar o ar até a memória
do corpo despido e quente
e quieto entre os lençóis
tudo isso abre as suas feridas
pede as suas cicatrizes
um tempo que ultrapasse o tempo
medindo-o com a sua ternura
e com tudo o que se perde
com tudo o que vai e vem e não nos pode gelar
o corpo os dedos movendo-se lentamente
traçando o nome da minha cidade nas tuas costas

até a mais fechada das estações
se abre à tua frente
foste tu quem escreveu
um poema sobre um montanhista
que se perdeu as coisas despontam
até na incerteza e na espera
e na febre e no mais estéril dos tempos
até a erva que o gelo agora fere
com a sua aparência de lânguida lâmina
que um pouco de vento poderia desfazer
como se fossem frágeis cristais
pó como os corpos
o teu perfil, a atenção que olha adiante
e se precipita ansiosa sobre o tempo
até aqui na espera de quase nada, antónia
o teu olhar que cresce e o mundo
que recrudesce à nossa volta

Tatiana Faia


Oxford, 22 de Novembro de 2018



Mais três poemas em Ruido manifesto 


Blog Enfermaria 6: "Um quarto em atenas, poética do acontecer (recensão)", de Vítor Gonçalves 


Tatiana Faia (aeuropafaceaeuropa)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Armindo Mendes de Carvalho - Os /As

 


Os / As

Os dos bilhetes postais
os dos cartões de visita
dos anúncios nos jornais
os das palavras cruzadas
dos retratos pornográficos
do amor em dias certos
do amor em certos dias
os que nos contam a fita
os que só falam dos filhos
e lá vem o retratinho
os que são muito machistas
as do furor uterino
os caçadores de autógrafos
os que sabem sempre a última
os dos parabéns por tudo
dos sentimentos por nada
os que mandam boas-festas
os que estão sempre doentes
os que eles é que sabem
os que não sabem pevide
os que se riem por tudo
os que não riem de nada
os da lágrima na esquina
os que falam no cinema
os que ressonam no dito
os que são sempre os melhores
os nem homens nem mulheres
os que só têm memória
os que perderam a mesma
os da última anedota
os que impingem a receita
e os que fazem dieta
os que nos mandam missivas
e escrevem em grande estilo
os que só falam de si
os que só falam dos outros
os mais isto e mais aquilo

Armindo Mendes de Carvalho


Poemas de ponta e mola (1975)


(Lido no blogue Poesia dos Dias Úteis)


A Página da Educação - “Mendes de Carvalho - uma poesia crítica e satírica”



(Fotografia de Pedro Neves - Basta! Parte 7,  2 de março de 2007)