segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Alexandre O'Neill - O ladrão do pão (+ dito por Mário Viegas)



Piano - José Calvário e José Luis Tinoco
Viola acústica e direcção musical - José Niza
Pintura de Victor Vasarely (1906-1997)


O LADRÃO DO PÃO 

Eu já não sou marujo.
do mar fujo.

§

O mar é um grande ladrão.
O mar não vem comer à mão.

§

Adentro-me pelos campos.
Levo um remo.
Ainda tremo do re-
mar.

§

Dou costas às searas,
que me fazem marear.

§

O ladrão não rima com pão.
O ladrão não rema.
Quem remava era a minha mão.

§

Até que enfim que o rosmaninho
é uma flor.

§

Remo ao ombro,
deito sombra no
chão.

§

Marujinho às amoras,
foi o mar que te ralhou?


Ainda falam do ladrão.
Ainda sabem quem sou.

§

Um coelho
no tojo.

Zás zar-
pa.

Ainda falo as palavras do ladrão.

§

Nestes quatro caminhos alguém naufragou.

Aqui viu contados seus dias
Joaquim Inácio, dito O Manaças,
morto à traição numa espera
que para ele não era.
Ó tu que passas,
um Padre-Nosso e uma Avé-Maria
por sua intenção.


Credo!
Eu e o remo
fazemos sombra de cruz
no chão.

§

Pergunto ao do tractor:

Amigo, aonde leva este caminho?
– Pra lá dos montes, marujinho.


Ó ladrão
vou-te afogar em vinho.

§

À porta da taberna,
o ramo de louro.

Na soleira,
uma cadela prenha.

§

À terceira rodada
já querem saber donde é que eu sou,
que venho ali fazer.

Respondo:

Esquecer.

§

Tenho lá fora um remo.
É o que me resta do mar,
mais uma grande vontade
de o afogar.


§

Marujinho, a terra é madrasta
pra quem está do lado do suor.

– E o mar é um grande ladrão.
Não troca o suor em pão.

§

Galgo a soleira,
pego no remo.

Estirada, a cadela
parece um peixe
na minha esteira.

§

Agora abre-se
o guarda-chuva da noite.

Nos montes, em derredor,
piscam luzeiros,
alteiam-se fogachos.

Trinco a cebola,
mordo o casqueiro.

Largo a pensar.

§

Dois luzeiros descem do monte.
Desaparecem. Aparecem.

Dois faróis encandeiam-me.
Tac-tac de motor.

Suba.
É a última da carreira.

§

Tran! A porta fechou-se.

Olho em redor.
Sou o único passageiro.

§

Nas curvas, ouço o remo
rolar no tejadilho.

Começo a não perceber.
Começo a sentir frio.

§

Ninguém me cobra bilhete.

A camionete vai
desarvorada.

§

Ninguém me pergunta

donde? praonde?

A camionete pá-
ra.

§

É aqui. Desça.

Salto.
Atiram-me o remo
para a estrada.

§

Então o grande olho
acusador,
fogo santelmo na roda da candeia,
crava-se em mim: – Aqui é a fronteira.
Algo a declarar?

– Só este lenho
que eu trouxe por trazer.

– Nada a fazer.
Tem de voltar prò mar.


§

Ao sol
não canta o rouxinol.

Na alta manhã
uma voz clareia.

Lá estão os montes
de antes de eu os sonhar.

§

– Acorda, padeirinho
que o pão não cozeste.
Deixaste sair o dia.
Onde foi que te perdeste?

Trouxeste a pá contigo,
à procura de forno?
Escusavas de ir tão longe,
que o meu ainda está morno.

Vem cozer o teu pão,
padeirinho jeitoso.
Eu amasso a farinha.
Tu aqueces o forno.

E depois, quando o pão
estiver a tufar,
galhofeiros, riremos
de o ouvir estalar.


§

Quem disse que fui marinheiro?
Aqui declaro a pura verdade:
esta pá é pá de padeiro
(padeiro de muito enfornar)
e se não fora o ladrão do pão
até gostava de ir conhecer
o mar!



Alexandre O'Neill


De Ombro na Ombreira (1969)