terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Miguel Esteves Cardoso - O pepino torcido


 

O pepino torcido

Quanto mais se envelhece, menos tempo se tem de vida. Sim, mesmo que se morra no dia seguinte. O tempo acelera, um ano dura só um mês e uma década passa num só ano.
   Que se há-de fazer? Geralmente acompanha-se com memórias da infância, das férias de Verão que nunca mais acabavam. Nessa altura um dia era uma eternidade. Era bom, não era?
   Mas não era. Quando somos pequenos estamos sempre à espera da coisa que se segue, que nunca mais vem. Perdemos tempo a pedir que tudo aconteça mais depressa e a chatear as pessoas que tomam conta de nós. O tempo é comprido por ser chato e por sermos impacientes.
   O mal vem daí, da nossa meninice. Éramos pequeninos mas já perdíamos tempo como gente grande. É daí que vem a nossa incapacidade para viver no momento presente. Tanto faz sermos crescidos e chorarmos a falta de tempo como sermos crianças a chorar porque o tempo não passa.
   Esperar é rejeitar o presente. É como olhar para os ponteiros do relógio. Não só não os faz andar mais depressa: também nos atrasa. São muitos os relógios disfarçados que andam para aí: écrans de todas as espécies em que os ponteiros são pessoas a fingir que são outras. Neles fixamos os olhos e, sem darmos por isso, a vida vai-se desligando da alma. Depois olhamos para um relógio verdadeiro e apanhamos o susto que merecemos.
   Que horas são? Já chegámos? Quando é que acaba a viagem? Quando é que acaba a parte má e começa a boa? As perguntas das crianças são iguais aos remorsos dos velhos. Ambos são desperdícios inúteis.

Miguel Esteves Cardoso

(Público, 2 de setembro de 2017)




(Fotografia de Orestis Tidio)


Cesário Verde - O Sentimento de um Ocidental

Maria Inês


Tiago Barbosa




domingo, 29 de dezembro de 2024

Murilo Mendes - Jandira



JANDIRA

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.
E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.

Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.

Murilo Mendes 

(Aqui)


O Menino Experimental. Antologia Org. Affonso Romano de Sant'Anna Summus Editorial, São Paulo, 1979


(Fotografia de Diogo)


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Vinicius de Moraes - Poema de Natal

 


POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes



(Fotografia de Maxwell Mariano - Ruas de São Luís, Maranhão, 2014)


sábado, 21 de dezembro de 2024

Mais una vez: Adélia Prado - Ensinamento



Mais una vez vez: o primeiro poema de Adélia Prado publicado no blogue no día 21 de dezembro de 2010),  mas agora, para além de ler, para ouvir 


ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.





quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Eugénio de Andrade - “Faz uma chave, mesmo pequena...”




Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

Eugénio de Andrade



segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Camilo Pessanha - Paisagens de Inverno

 


PAISAGENS DE INVERNO

I

Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou... Voltai, horas de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
— Cismai meus olhos como dois velhinhos.

Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras,
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. —

Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...


II

Passou o Outono já, já torna o frio...
— Outono de seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
— O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?
— E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias... 


Camilo Pessanha



(Fotografia de Robert Grant: Inverno no Parque, Lisboa, 2016)


sábado, 14 de dezembro de 2024

Paulo Leminski - Ali…

 


Ali...
só...
ali...
se...

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse...

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce...

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece.

Paulo Leminski




 
(Fotografia de Delson Cursino, Alice, 2016) 


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Alexandre O'Neill - O ladrão do pão (+ dito por Mário Viegas)



Piano - José Calvário e José Luis Tinoco
Viola acústica e direcção musical - José Niza
Pintura de Victor Vasarely (1906-1997)


O LADRÃO DO PÃO 

Eu já não sou marujo.
do mar fujo.

§

O mar é um grande ladrão.
O mar não vem comer à mão.

§

Adentro-me pelos campos.
Levo um remo.
Ainda tremo do re-
mar.

§

Dou costas às searas,
que me fazem marear.

§

O ladrão não rima com pão.
O ladrão não rema.
Quem remava era a minha mão.

§

Até que enfim que o rosmaninho
é uma flor.

§

Remo ao ombro,
deito sombra no
chão.

§

Marujinho às amoras,
foi o mar que te ralhou?


Ainda falam do ladrão.
Ainda sabem quem sou.

§

Um coelho
no tojo.

Zás zar-
pa.

Ainda falo as palavras do ladrão.

§

Nestes quatro caminhos alguém naufragou.

Aqui viu contados seus dias
Joaquim Inácio, dito O Manaças,
morto à traição numa espera
que para ele não era.
Ó tu que passas,
um Padre-Nosso e uma Avé-Maria
por sua intenção.


Credo!
Eu e o remo
fazemos sombra de cruz
no chão.

§

Pergunto ao do tractor:

Amigo, aonde leva este caminho?
– Pra lá dos montes, marujinho.


Ó ladrão
vou-te afogar em vinho.

§

À porta da taberna,
o ramo de louro.

Na soleira,
uma cadela prenha.

§

À terceira rodada
já querem saber donde é que eu sou,
que venho ali fazer.

Respondo:

Esquecer.

§

Tenho lá fora um remo.
É o que me resta do mar,
mais uma grande vontade
de o afogar.


§

Marujinho, a terra é madrasta
pra quem está do lado do suor.

– E o mar é um grande ladrão.
Não troca o suor em pão.

§

Galgo a soleira,
pego no remo.

Estirada, a cadela
parece um peixe
na minha esteira.

§

Agora abre-se
o guarda-chuva da noite.

Nos montes, em derredor,
piscam luzeiros,
alteiam-se fogachos.

Trinco a cebola,
mordo o casqueiro.

Largo a pensar.

§

Dois luzeiros descem do monte.
Desaparecem. Aparecem.

Dois faróis encandeiam-me.
Tac-tac de motor.

Suba.
É a última da carreira.

§

Tran! A porta fechou-se.

Olho em redor.
Sou o único passageiro.

§

Nas curvas, ouço o remo
rolar no tejadilho.

Começo a não perceber.
Começo a sentir frio.

§

Ninguém me cobra bilhete.

A camionete vai
desarvorada.

§

Ninguém me pergunta

donde? praonde?

A camionete pá-
ra.

§

É aqui. Desça.

Salto.
Atiram-me o remo
para a estrada.

§

Então o grande olho
acusador,
fogo santelmo na roda da candeia,
crava-se em mim: – Aqui é a fronteira.
Algo a declarar?

– Só este lenho
que eu trouxe por trazer.

– Nada a fazer.
Tem de voltar prò mar.


§

Ao sol
não canta o rouxinol.

Na alta manhã
uma voz clareia.

Lá estão os montes
de antes de eu os sonhar.

§

– Acorda, padeirinho
que o pão não cozeste.
Deixaste sair o dia.
Onde foi que te perdeste?

Trouxeste a pá contigo,
à procura de forno?
Escusavas de ir tão longe,
que o meu ainda está morno.

Vem cozer o teu pão,
padeirinho jeitoso.
Eu amasso a farinha.
Tu aqueces o forno.

E depois, quando o pão
estiver a tufar,
galhofeiros, riremos
de o ouvir estalar.


§

Quem disse que fui marinheiro?
Aqui declaro a pura verdade:
esta pá é pá de padeiro
(padeiro de muito enfornar)
e se não fora o ladrão do pão
até gostava de ir conhecer
o mar!



Alexandre O'Neill


De Ombro na Ombreira (1969)