terça-feira, 25 de junho de 2024

José Tolentino Mendonça - Saudades de Alexandria




SAUDADES DE ALEXANDRIA

Posso dizer a idade da sombra
onde o nome repousa
mas é um jogo mortal
deixar esse abismo
descoberto
alguém pode encontrar a morte

Posso dizer: recuperem dos espelhos
as sublimes imagens
tragam-me a beleza antiga
um dia incendiada

Ah tenho saudades de Alexandria
onde os poemas se escreviam
para o fogo
o único recitador tão perfeito
que não se repete

José Tolentino Mendonça



Longe não sabia (1997)


Torture of Saint Catherine of Alexandria BAV (Biblioteca Apostolica Vaticana) Vat.gr.1613 page 207 [~ 1000 AD] manuscript designed as a church calendar or Eastern Orthodox Church service book (menologion) that was compiled c. 1000 AD, for the Byzantine Emperor Basil II (r. 976–1025)

(Fotografia de Peter)



segunda-feira, 24 de junho de 2024

Uma quadra de Pessoa para o dia de S. João




No dia de S. João
Há fogueiras e folias
Gozam uns e outros não,
Tal qual como os outros dias.

Fernando Pessoa



Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). - 116.



(Fotografia de Renata Weninger)


segunda-feira, 17 de junho de 2024

Alexandre O’ Neill - Bicicleta




BICICLETA

Ninguém toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão «pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no trabalho, nem no lazer. Por enquanto... Mas a bicicleta tem outros pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer. A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas. Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais oitos, o «Apelo Angustiante» que há anos, por ocasião das grandes cheias na região de Lisboa, apareceu nos jornais:

«O meu marido saiu de casa no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita, eu e os meus dois filhos.»

Alexandre O’ Neill


A Capital, 5 Fevereiro 1974


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A BICICLETA  

O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.

Alexandre O’ Neill


As horas já de números vestidas (1981) 




(Fotografia de Yves Matringe )
   

terça-feira, 11 de junho de 2024

Fernando Pessoa e Ruy Belo




Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924


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Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além do sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar

Ruy Belo


Aquele Grande Rio Eufrates (1961)







segunda-feira, 10 de junho de 2024

Camões - “No tempo que de Amor viver soía…”

 


No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!

Luís de Camões



(Tiziano - Vênus ao espelho, 1555)


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Rui Caeiro - Sabem que mais?



SABEM QUE MAIS?

Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo


Rui Caeiro



Lido em de tanto bater o meu coração parou


Para saber um pouco sobre Rui Caeiro (Vila Viçosa, 1943 - Oeiras, 2019), veja-se o link do excelente blogue modo de usar & co. revista de poesia e outras textualidades conscientes, onde se podem-se ler mais versos dele.


Entrevista com Rui Caeiro em Jogos florais (Setembro 2018)