quinta-feira, 24 de setembro de 2020

João Miguel Fernandes Jorge - E o chão fosse o meu coração

Fotografia de bbabyshambles


E O CHÃO FOSSE MEU CORAÇÃO

Partira. E por isso me doía a cabeça e não
dormira toda a noite. Ficara enrolado nos
lençóis, à escuta, esperando um regresso,
esperando não sabia o quê.
Compreendia que continuava ainda na mesma
sensação de expectativa,
à espera de qualquer coisa, numa ansiedade que
não passava como se a vida não pudesse mais
ser a mesma, apesar do próximo inverno
apagar inexoravelmente todos os sinais.

Partira. O inverno encarregar-se-ia, pouco a
pouco, de tudo esbater. Aqueles meses tão
cheios da sua presença haviam de recuar, de
perder importância, de desbotar e de se
irem fundindo noutros dias.
Perder-se-iam no abusivo uso dos infinitos que
dão sempre uma poesia frouxa,
uns versos de incidente
na pressa de registarmos um acontecimento
extravagante.

Partira. Não deixaria de tirar daí algum proveito,
um pano torcido acima de um balde como se
se lavasse o chão
e o chão fosse o meu coração.

João Miguel Fernandes Jorge

a jornada de cristóvão de távora. segunda parte. Presença, 1ª edição, 1988.