«Molero observa», disse Austin, «que o rapaz escolhia muitas vezes as zonas do globo para onde se dirigia só por causa do som das palavras, foi à Pensilvânia por causa do som, a Pensilvânia não lhe interessava, interessava-lhe a palavra, gostava muito da Polónia por causa disso, e da Gronelândia, e da Itália, e de outras palavras, de preferência esdrúxulas, da família do murmúrio ou da âncora, da cólica ou do primogénito, e também do tímbalo e do crisântemo, do rodízio ou do acéfalo, não só o som da palavra mas também o peso e o contorno e o contorno, a sua seda ou a sua aresta, e das cores que as palavras lhe sugeriam, e do prazer antecipado de poder trabalhar essas palavras no local próprio, descobrir a sua inserção geográfica, atravessou o canal do Panamá por causa do acento tónico no último a, era algo que se lhe afigurava definitivo, claro que muitas vezes os locais não correspondiam ao som, ou à espessura, ou à densidade da palavra, e vá de fazer as correções necessárias, se um país dificilmente pode ser virado do avesso por não corresponder ao que dele se esperava, não se pode arrasar um supermercado para instalar uma floresta, ou subverter o ruído da serração de madeiras com o cantar do rouxinol, ou fazer que os relógios não marquem horas, marquem paixões ou a ausência delas, pode-se, contudo, interpretar esse país através de uma palavra que o resuma aceitavelmente, a palavra, a palavra chamada paisagística,de olhar por alto, ou a palavra iceberguiana, de uma solidez submersa, e então começaram a aparecer nos seus versos países reais com nomes fictícios, ou palavras fundidas umas nas outras, a Dinacócia, por exemplo, metade Dinamarca, metade Escócia, dava-lhe, por estranho que pareça, a Bélgica, e isto nos primeiros versos, onde a alquimia ainda balbuciava, porque depois eram as palavras intermináveis, ondulantes ou tensas, ou os monossílabos secos e brevíssimos, e por aí adiante, Molero procura explicar isto pacientemente a páginas duzentas e setenta e seis e seguintes, leva o seu escrúpulo ao ponto de analisar a influência da cedilha no c da palavra França, tudo isto tem que ver, segundo ele, com a aturada espera a dois que fez com Erculano e com outros percursos de ordem estética que ele, Molero, reconhece aqui e além, e que seria demorado, um pouco improfícuo e algo desnecessário explicar, a não ser que entrássemos, escorregando vertiginosamente, naquilo a que chama grande especulação crítica dos planos inclinados, os declives aí vou eu do subconsciente». Houve uma pausa.
Dinis Machado
Do seu livro O Que Diz Molero (1977)
(Lido em Talvez pensar)
Dinis Machado
Do seu livro O Que Diz Molero (1977)
(Lido em Talvez pensar)