segunda-feira, 11 de março de 2024

Manuel da Fonseca - Maltês




MALTÊS

I

Em Cerromaior nasci.

Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.

E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.


II

Veio a guarda com a lei
no cano das carabinas.

Cercaram-me num montado;
puseram joelho em terra;
gritaram que me rendesse
à lei dos caminhos feitos.
Mas eu olhei-os de longe,
tão distante e tão de longe,
o rosto apenas virado,
que só vi em meu redor
dez pobres ajoelhados
perante mim, seu senhor.


III

Chegou gente às janelas,
saíram homens à rua:
‑ as mães chamaram os filhos,
bateram portas fechadas!

E eu, o desconhecido,
o vagabundo rasgado,
entrei o largo da vila
entre dez guardas armados;
‑ mais temido e mais amado
que o deus a que todos rezam.

‑ Que nunca mulher alguma
se rendeu mais a um homem
que a moça do rosto claro
ao cruzar os olhos pretos
com o meu olhar de rei!


IV

... E, vendo que eu lhes fugia
assim de altiva maneira
à sua lei decorada,
lá,
longe do sol e da vida,
no fundo duma cadeia,
cheios de raiva me bateram.
Inanimado,
tombei por fim a um canto.

E enquanto eles redobravam
sobre o meu corpo tombado,
adormecido
eu descansava
de tão longa caminhada!...

Manuel da Fonseca, in Planície, 1941


(Texto em Folha de Poesia)




(Cerromaior, fotografia de Aires Almeida)