Na semana passada, certo inglês, de passagem por Lisboa, quase me implorou, farto do Idêntico em toda a parte:
— Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há?
Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:
— Há. «Cabarets».
O senhor estrangeiro encolheu os ombros em trejeito de desdém. Mas eu teimei:
— Sim. «Cabarets» …«Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. «Cabarets» … do avesso em que não se encontram mulheres de riso fatal a dançarem ao som macabro do estalar das rolhas das garrafas de champanhe. Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas, com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.
Tomámos um táxi, descemos uma viela sonâmbula, abrimos a porta de vidro em frente e pisámos com reverência o veludo do tapete de cascas de tremoços do Salão de Fados em que duas dezenas de seres, palidamente diluídos no rumor das vozes em surdina, se preparavam para sofrer em comum.
Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos fantasmas, para não perturbarem a dor dos clientes que, de cabeça pesada entre as mãos, parafusavam neste tema de meditação irresolúvel: «A vida é uma chatice!» (…)
Ia começar a função. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas mortas…
Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade.
José Gomes Ferreira
De O Irreal Quotidiano: histórias e invenções (1971). Sobre este livro, v. CITI
— Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há?
Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:
— Há. «Cabarets».
O senhor estrangeiro encolheu os ombros em trejeito de desdém. Mas eu teimei:
— Sim. «Cabarets» …«Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. «Cabarets» … do avesso em que não se encontram mulheres de riso fatal a dançarem ao som macabro do estalar das rolhas das garrafas de champanhe. Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas, com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.
Tomámos um táxi, descemos uma viela sonâmbula, abrimos a porta de vidro em frente e pisámos com reverência o veludo do tapete de cascas de tremoços do Salão de Fados em que duas dezenas de seres, palidamente diluídos no rumor das vozes em surdina, se preparavam para sofrer em comum.
Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos fantasmas, para não perturbarem a dor dos clientes que, de cabeça pesada entre as mãos, parafusavam neste tema de meditação irresolúvel: «A vida é uma chatice!» (…)
Ia começar a função. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas mortas…
Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade.
José Gomes Ferreira
De O Irreal Quotidiano: histórias e invenções (1971). Sobre este livro, v. CITI