segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A Terceira Mão (João Serra)



E ainda hoje posso recordar o som do malho sobre o ferro em brasa, afeiçoando a lâmina, e o cheiro de corno de vaca aquecido, do qual se obtinha o cabo. No mundo rural, o canivete era o instrumento mais universal, acompanhando toda a vida quotidiana. Era a terceira mão, tão indispensável como as outras duas. Era tratado com todo o cuidado, evitando-se que fosse atingido pela ferrugem e cuidando do fio de corte, que não podia ter falhas ou rombos. Pouco volume fazia nos bolsos camponeses, onde entrava de manhã, com o lenço e a onça de tabaco para os fumadores. Havia-os de diversos feitios, mas o canivete de uso mais generalizado tinha a ponta em forma de quatro de círculo. Com ele se cortava o pão, naquela atitude tão característica do campo (o naco seguro pela mão esquerda, encostado ao peito, enquanto a direita corta uma fatia com um movimento orientado de fora para dentro), se abria o pepino com dois golpes cruzados pelos quais se deitava o sal grosso. Com ele se cortava a cebola em pequenos gomos e se pegava na sardinha ao lume (entalando a respectiva cabeça entre o polegar e a lâmina do canivete), que era em seguida depositada sobre a fatia de pão ou o prato de folha esmaltado. Com ele, como se fora um garfo, se espetavam as batatas cortadas ao meio e se levavam à boca. Com ele se retalhavam azeitonas e se golpeavam as tiras de toucinho antes de as dispor sobre as brasas de videira. Com ele se aparava a ponta de um graveto com o qual se palitavam os dentes, depois da refeição. Com ele se limpavam as botas enlameadas e se entalava papel ensebado nas frinchas dos tonéis. Com ele se dava o corte orientador do rasgão que iria ser feito na saca de serapilheira, com ele se dava forma de rolha a um bocado de cortiça. Com ele se cortavam unhas de humanos e se aparavam cascos de animais. Com eles se apertava, em caso de necessidade, um parafuso e se desencravava um espinho da palma da mão. Com ele se desenhava no chão um caminho ou uma casa, com ele se assinalava com o nome, ou simplesmente uma cruz, numa superfície acabada de revestir a cimento. Com ele, na hora do descanso, se davam asas à imaginação, escavando pedaços de madeira macia donde sairiam miniaturais maravilhas, ou compondo um pífaro em pau de cana. Com ele se afiavam lápis na escola e abriam cartas e, excepcionalmente, livros. Com ele um homem podia fazer frente a perigos reais ou imaginários. Com ele um homem nunca se sentia só.


 João Serra, in Crónicas dos anos 50/60