segunda-feira, 20 de abril de 2015

Por causa de uma ave (Fernando Pinto do Amaral)



POR CAUSA DE UMA AVE

para a minha mãe

Cada vez gosto menos de saborear
o travo tão pastoso da morte, o murmúrio
secreto dos seus olhos invisíveis
dentro de mim. Porém, há pouco tempo,
num fim de tarde deste fim de julho,
passou-me um episódio que rompeu
de repente na alma todas as comportas
que fingem proteger os ópios tranquilos
a que chamamos vida. Aconteceu
depois de ter chegado a esta casa
perdida numa encosta de província
e onde venho só de longe em longe:
foi durante a limpeza da sala maior
que, afastando um armário, descobri
entre pequenas teias, quase envolto
num sudário de pó, ali esquecido,
na treva e no silêncio dos meses de inverno,
o esqueleto de um pássaro. Entrara
pla chaminé de pedra e escorregara
até cair junto à lareira. Hoje
imagino o pavor do seu voo suicida
Poisando às cegas de móvel em móvel,
dias e dias plo escuro deserto
da sala fria, à toa, procurando
escapar ao seu naufrágio, encontrar
uma réstia de céu, até que, já sem forças,
se deixou deslizar para trás desse armário
onde morreu de sede e fome e solidão
enquanto mal batia as asas
em arremedos de frustradas fugas.
Ao ter na mão aquele resto de corpo
os “pedacinhos de ossos”, toda a quilha
do peito sustentando o arco das costelas,
as minúsculas patas quase intactas,
lembrei-me, num relance de terror,
de outros ossos maiores, os do meu pai,
a não muitas centenas de metros daqui,
num absurdo cubículo de pedra
sobre o qual está gravado um nome de família.
Apodrecem há mais de quinze anos
em sombras que serão iguais a nós
– passageiros ingénuos e translúcidos
de corpos consumidos no seu próprio lume.
Ao sentir entre os dedos o que foram asas,
vi nos últimos gestos dessa ave,
chocando com as paredes, sem saída,
o mesmo desespero esbracejante
de uma nocturna cama de hospital
onde houve um homem que lutou às cegas
no seu estertor febril e consciente,
junto à fronteira íntima, abissal,
que nem a voz transpõe. Nenhum dos gritos
pode ecoar nos meus, aqui, agora,
nesta dádiva enxangue e sem destinatário,
porque toda a poesia se resume
a um calafrio embalsamado em letras,
palavras destinadas a morrer
no momento em que as páginas de um livro,
como as asas de um pássaro, os braços de um homem,
se fecham num sono a que ninguém responde.

Fernando Pinto do Amaral