quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Gonçalo Lobo Pinheiro - Fotografia

 



FOTOGRAFIA

A imagem ficou retida
Na película da eternidade.
Disparei ao tentar agarrar o infinito.
Sei que se estiveres no enquadramento,
Serás minha em lembrança de papel.
No foco tornei claro o teu rosto,
No diafragma regulei a tua luz.
Perdi sensibilidades para te poder dar recorte, e
Orientei as linhas para te percorrer.
Escolhi esta fotografia!
De olhar para ela vi magia,
Sossego, calma, traduz sem fim,
A invertida imagem da tua alma.
Olha bem para esta fotografia.
É tua, minha e de mais ninguém.

Gonçalo Lobo Pinheiro

Gonçalo Pinheiro (Lisboa, 1979)


(Lido em Toca a escrever)


(Fotografia de Arjan Beeftink - Porto, Portugal, 2024)

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Francisco Rodrigues Lobo - "Fermoso Tejo meu, quão diferente..."

 

Fermoso Tejo meu, quão diferente
te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
a quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
o meu viver contente ou descontente!

Já que somos no mal participantes,
sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
eu não sei se serei quem dantes era.


Francisco Rodrigues Lobo



sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Manoel de Barros - Autorretrato falado



AUTORRETRATO FALADO

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Manoel de Barros


VIDEO_POEMA #36 em cinepovero2009:

Manoel de Barros (1916-2014) “Autorretrato falado” in «O Livro das Ignorãças», 1993 Voz de Manoel de Barros em «Manoel de Barros», Audio-Livro, Ed. Cidade da Luz (Coleção Poesia Falada), São Paulo, 2001



segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Ruy Belo - Morte ao meio-dia


MORTE AO MEIO-DIA

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
E o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo


O País Possível
(1973)


(Fotografia de Ricardo Silva Cordeiro, Samouqueira, Alentejo)


quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Inês Dias - Santo Antoninho dos esquecidos




SANTO ANTONINHO DOS ESQUECIDOS

                                                                     para o José Carlos Soares

O esquecimento tem portões
fechados e velas a acordar
o crepúsculo enquanto o vento
sopra manso,
abanado a cauda
ao chegarmos.

Não tira os olhos de nós,
mendiga um osso,
outro poema,
desenterra séculos,
nevoeiros, palmas de mão
com o destino apagado.

Respeita as portas teimosas,
todas as capelas enfeitadas
de luz contra o medo -
e vai-se já jogando às cartas
nas suas costas,
sob o silêncio atapetado a fogo.

Mas esperará sempre por nós,
fiel,
à saída.

Inês Dias



(Fotografia de Caco Carvalho)


sábado, 1 de novembro de 2025

Eduardo White - Há vezes em que nem é a morte que se teme


 

HÁ VEZES EM QUE NEM É A MORTE QUE SE TEME

Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.

Eduardo White




(Fotografia de DrkrainboW)


sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Carlos Drummond de Andrade - A flor e a náusea



A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas,
consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horasda tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade



A Rosa do Povo (1945)