Trago no bolso
os meus tesouros:
Cabeça de Boi
Cabeça de Vaca
Contra-Mundo
e Papa.
Licenças e
Abafadores.
Pequenos
universos
de vidro
à deriva.
Carlos Alberto Machado
Mundo de Aventuras (2010)
POESIA (e mais) de que gosto
Se coubesse em meus versos e em meu canto
A tristeza sem fim que o peito encerra,
Moveria aos penedos desta serra
A nova piedade e novo espanto.
Se puderam meus olhos chorar tanto
Quanto se deve à causa que os desterra,
Cobriram já em lágrimas a terra,
Escurecendo o seu tão verde manto.
Mas o que tem amor dentro encerrado
Na alma, que à língua e olhos se defende,
Não pode ser com lágrimas contado:
Ah! quem sabe sentir quanto compreende
Que o mal que está oculto em meu cuidado
Não se vê, não se mostra, não se entende.
Francisco Rodrigues Lobo
ISTO É O MEU CORPO
O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve
O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?
Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar
José Tolentino Mendonça
Estação Central. Assírio & Alvim, 2012
(Fotografia de Camila Svenson)
CIRCADIANA
Circulam em mim sete humores
sabores, cheiros e cores
Tem um redondo, doce e cor-de-rosa
que sabe cantigas de ninar
sacia-se na pele macia das crianças
dorme pesado
queima-se ao sol, ri de qualquer besteira
é generoso
leite de peito, florada, saúde.
Tem um que é vinagre e fel
Vendetta
Tem um que é muito bem comportado
supermercado, trânsito
bons dias!, gentilezas
me ajuda a ganhar a vida
(trottoir da alma)
Tem um que é pura luxúria
língua, tesão, gemido
(e que fica guardado
numa caixinha de veludo vermelho
no fundo da gaveta
no meio de calcinhas cor de champanhe)
Circulam em mim sete humores
mandam em mim, fazem lei.
Uns conheço. Uns se escondem.
Sobre estes uns nada sei.
Etel Frota
(Cornélio Procópio, Paraná, 1952)
(Fotografia de Alexandre D.)
CANTIGA DE EMBALAR
Tão docemente se ouve um grito de criança,
enquanto a noite cerra o seu passo mais largo
que a névoa branda em torno aos candeeiros.
Até mim chegam indistintos halos
de luzes próximas, talheres fulgindo,
além, por sobre quintais abandonados.
No céu, sem estrelas como um fumo inútil,
espraiam-se olhares, silêncios, cartas esquecidas,
e túmulos perdidos no subsolo das casas.
Um grito de criança. E, no entanto,
há uma guerra, uma paz, armamentos sem fim,
e é importantissimo estudar economia política.
Saberás, meu filho do acaso de outros,
ser diferente sempre, dia a dia?
Saberás bem tudo, e sem saber o quê?
Serás como esta noite de um silêncio grávido
suspenso eternamente sobre as coisas?
Jorge de Sena
Coroa da Terra (1946) em Poesia - I, 2ª edição. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa/1977
(Fotografia de Otalicio Rodrigues)
SÍSIFO
Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga
Diário XIII [1977-1982], Coimbra Editora, 1983
(Tiziano, Sísifo, 1548/49)