segunda-feira, 24 de março de 2025

Manuel Bandeira - Rimancete


RIMANCETE

À dona do seu encanto,
À bem amada pudica,
Por quem se desvela tanto,
Por quem tanto se dedica,
Olhos lavados em pranto
O seu amante suplica:

O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te meus olhos (disse ela),
Os meus olhos sim senhor…
— Ai, não me fales assim!
Que uma esperança tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus lábios (disse ela),
Os meus lábios sim senhor
— Ai não me enganes assim!
sonho meu! Coisa tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te as minhas mãos (disse ela),
As minhas mãos sim senhor…
— Não me escarneças assim!
Bem sei que prenda tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus peitos (disse ela),
Os meus peitos sim senhor…
— Não me tortures assim!
Mentes! Dádiva tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Minha rosa e minha vida
Que por perdê-la perdida,
Me desfaleço de dor…
— Não me enlouqueças assim,
Vida minha! Flor tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela?
— Deixas-me triste e sombria.
Cismo… Não atino o quê…
Dava-te quanto podia…
Que queres mais que te dê?

Responde o moço destarte:
— Teu pensamento quero eu!
— Isso não… não posso dar-te…
Que há muito tempo ele é teu…

Manuel Bandeira


Carnaval (1919)



(Fotografia de André Mantelli - Segredos de carnaval, 2010)


quinta-feira, 20 de março de 2025

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - “Soneto Já Antigo”


 

III

Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes

(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...

(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913


“Três Sonetos” Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 2.

1ª publ. com o título “Soneto Já Antigo” in Contemporânea, nº 6. Lisboa: Dez. 1922.


(http://arquivopessoa.net/textos/4390)



segunda-feira, 17 de março de 2025

José Tolentino Mendonça - O teu rosto aos vinte e cinco anos de idade



O TEU ROSTO AOS VINTE E CINCO ANOS DE IDADE

Numa conversa sobre o destino da arte
lembro o teu rosto
onde os elementos ensaiam
a revelação dos primeiros detalhes
irremediáveis:
a marca da sombra, o recuo das forças,
o alarme da dor,

a arte existe apenas
como homenagem (pobre, desolada)
àquilo que cada rosto foi
um dia através da paisagem.

José Tolentino Mendonça



Baldios (1999), em A Noite Abre Meus Olhos [poesia reunida], Assírio & Alvim, Lisboa, 2008

sexta-feira, 14 de março de 2025

Antero de Alda - Celestine



CELESTINE

Há quem tome comprimidos para a diabetes, para o coração, para o colesterol... Há também quem tome comprimidos para morrer e quem tome comprimidos para matar. Há ainda quem não tome comprimidos, nem para a diabetes, nem para o coração, nem para o colesterol, nem para morrer ou para matar. Provavelmente, só para sobreviver...

Até que as pedras se tornem mais leves do que a água, como diz António Lobo Antunes. Ou até que uma nova alma húmida seja capaz de nos resgatar de certa solidão existencial.

Enfim, deverei tomar algum comprimido para não morrer?

Antero de Alda


(Antero de Alda - abril 2018)



Antero de Alda (nasceu a 23 de Outubro de 1961 em Sever do Vouga e faleceu a 10 de Maio de 2018 em Amarante) foi um artista português. (Wikipédia)



segunda-feira, 10 de março de 2025

Carlos Drummond de Andrade - Mãos dadas




MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummon de Andrade


Sentimento do Mundo (1940)



sábado, 8 de março de 2025

Maria Gabriela Llansol - “Não há mais sublime sedução…”



Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.

Maria Gabriela Llansol


O começo de um livro é precioso, assírio & alvim (2003)



(Fotografia de Vera Biryukova)



terça-feira, 4 de março de 2025

Alexandre O'Neill - Um Carnaval

 



UM CARNAVAL  

Vem ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças

Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.

Alexandre O'Neill


No Reino da Dinamarca (1951)   



(Fotografia de Hubert Cazals, Carnaval en Portugal, 2017)