PÁTRIA
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)
terça-feira, 25 de abril de 2023
Sophia de Mello Breyner Andresen - Pátria
sexta-feira, 21 de abril de 2023
Mário de Sá-Carneiro - Como eu não possuo
COMO EU NÃO POSSUO
Olho em volta de mim. Todos possuem –
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minhalma pára e não os sente!
Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.
Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...
Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria...
Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...
De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.
Mário de Sá-Carneiro
Maio de 1913, Paris
(Fotografia de Marco Giusfredi - Sans titre. Paris, 2021)
segunda-feira, 17 de abril de 2023
Alda Lara - Testamento
À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
Alda Lara
segunda-feira, 10 de abril de 2023
Clarice Lispector - A paixão segundo G.H.
Clarice Lispector
A paixão segundo G.H. (1964)
segunda-feira, 3 de abril de 2023
Fernando Assis Pacheco - Pranto por Manuel Doallo
Podia-se ter esborrachado qualquer 23 de Agosto
véspera do San Bartolomé e ele na moto
correndo de Vitoria para as mozas de Ourense
e para as tazas em que era ainda mais exímio
e deixa-se morrer unha serán poñamos
por caso desolada agora pai de filhos
a última queixa: que lhe doía um braço
em troques há tanto sacana que parece de ferro
vaite ó carallo ó morte que me levas
o meu primo galego Manuel Doallo
morte merdeira
coisa ruim de cinza e névoa e cinza
nem nunca nestas terras se me eu lembro
houve um outro rapaz de tanto garbo
como il que era cáseque um rei e querem
que eu o chore e ao coração coitelo?
barqueira que mo levas puta infame
eu berro e berro à soedá do rio
Fernando Assis Pacheco
A Profissão Dominante (1982), in A Musa Irregular, Edições Asa, 1996; Assírio & Alvim, 2006
(Fotografia de Alberto Cernuda, Fisterra)
segunda-feira, 27 de março de 2023
Paulina Chiziane
Dançar. Dançar a derrota do meu adversário. Dançar na festa do meu aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no funeral do ente querido. Dançar à volta da fogueira na véspera do grande combate. Dançar é orar. Eu também quero dançar: A vida é uma grande dança.
Paulina Chiziane
segunda-feira, 20 de março de 2023
Rui Knopfli - Baldio
BALDIO
O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.
Rui Knopfli
Mangas Verdes com Sal (1969)
(Fotografia de Nuno Ramos, Galagala, Ponta de Ouro, Moçambique)