segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Eugénio de Andrade - Os amigos


Fotografia de Luiz Felipe Sahd

 

OS AMIGOS

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria –
por mais amarga.

Eugénio de Andrade 

 

 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Reinaldo Ferreira - O Futuro

 

Fotografía em The Delagoa Bay World

 

O FUTURO

Aos Domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos Domingos iremos ao jardim.
Diremos nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses-,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários

Reinaldo Ferreira (filho)


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Antero de Quental - O Palácio da Ventura

Gravura de Doré

 

O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Manoel de Barros - "No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates..."


Fotografia de Xavier Donat

 

No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.

Manoel de Barros numa carta a José Castello



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Fernando Pinto do Amaral - Zeitgeist

Sem título (1997) - António Dacosta (1914-1990)


Zeitgeist

Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


Fernando Pinto do Amaral

leyapoemas, jl
2009


(Lido em canal de poesia)


Nota. Zeitgeist (pronúncia: tzait.gaisst) é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.

(Wikipédia)



sexta-feira, 6 de novembro de 2020

António Osório - Amo-te

Fotografía de Piero/fiume azzurro


AMO-TE

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

António Osório

O lugar do amor (1981)

Poema lido no blogue Acontecimentos, de António Cícero.


domingo, 1 de novembro de 2020

Adélia Prado - As mortes sucessivas



AS MORTES SUCESSIVAS

Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu
me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu
nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

Adélia Prado

Retirado de Bagagem (1976), o seu livro de estreia.