sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Mário Dionísio - Meu galope é em frente



MEU GALOPE É EM FRENTE

Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!

Mário Dionísio 



«Meu galope é em frente», por Inês Nogueira e Carlos Zíngaro 




(Fotografia de Marie Hacene - au pas de course. quartier Casa da musica, Porto, 2017)


segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Joaquim Manuel Magalhães - “Chego onde fui novo um dia...”

 



Chego onde fui novo um dia.
As cidades pertencem à cal velha,
às paredes com nomes indeléveis.
A nós não, nem às árvores que morrem.

Tenho frio.
Alguns poetas visitam-me,
ouço-os com os olhos.
A inteligência está nas mãos,
digo-lhes, nenhum
iguala o que lhes peço.

De outro lado quem nos chama?


Joaquim Manuel Magalhães


De Envelope (1974), em Alguns Livros Reunidos, Contexto, 1987




(Fotografia de Marcio Meirelles)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

David Mourão-Ferreira - «É o centro do mundo É o reino de Apolo...»

 


4

                                                    Delfos

É o centro do mundo   É o reino de Apolo
Quem foi que pôs aqui Afrodite em blue-jeans
subindo o anfiteatro ao encontro do Sol
depondo na penumbra o esplendor das ruínas

Como galga os degraus   Lá em cima é o estádio
Eu encosto o ouvido ao umbigo da Terra
É para mim agora a sentença do oráculo
que sem eu perguntar me responde Mulher

Mas sei   dentro de mim  e sei que não me iludo
Que vim dizer adeus à minha juventude

David Mourão-Ferreira


Quarto poema de "Jogos de água" em Do Tempo ao Coração (1966)



(Fotografia de Theodorus Yerarides - Templo de Apolo en Delfos)


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Jorge de Lima - Poema do nadador

 


POEMA DO NADADOR

A agua é falsa, a agua é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a agua é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.

Jorge de Lima


Poemas Escolhidos (1925 a 1930)


(Fotografia de Nino Migliori - Il tuffatore, 1951)


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Luíza Neto Jorge - As Casas (I)

 


AS CASAS

I



As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

Luíza Neto Jorge



(Fotografia de César Augusto V.R.)


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Fiama Hasse Pais Brandão - Tâmara

 


TÂMARA

Pura circunstância trazerem-me
num cesto levíssimo as tâmaras.
Com a boca peso três sílabas.
Com os olhos sou ávida.
Com as mãos repouso e saboreio
os frutos translúcidos.

Fiama Hasse Pais Brandão


Obra Breve  (1991)




(Fotografia de Aina Vidal)

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Cruz e Sousa - Seios



Seios

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
das arvores do Mal fascinadoras,
das negras mancenilhas tentadoras,
dos vagos narcotismos venenosos.

Oasis brancos e miraculosos
das frementes volúpias pecadoras
nas paragens fatais, aterradoras
do Tédio, nos desertos tenebrosos…

Seios de aroma embriagador e langue,
da aurora de ouro do esplendor do sangue,
a alma de sensações tantalizando.

Ó seios virginais, talamos vivos,
onde do amor nos êxtases lascivos
velhos faunos febris dormem sonhando…

Cruz e Sousa


João da Cruz e Sousa (1861 - 1898) foi um poeta brasileiro. Com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, foi um dos principais representantes do simbolismo no Brasil.

Segundo Antônio Cândido, Cruz e Sousa foi o "único escritor eminente de pura raça negra na literatura brasileira, onde são numerosos os mestiços".



(Fotografia de Rodrigo Valença - Aninha, Recife)