quinta-feira, 29 de maio de 2025

Jorge de Lima - Canção de Davi na janela




CANÇÃO DE DAVI NA JANELA

A mulher de Urias estava tomando banho.
Eu vi a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Quebrei a cítara, versos não faço,
eu vi a mulher de Urias,
peitos mais belos nunca hei de ver.
A mulher de Urias estava tomando banho
em frente ao meu palácio.
Quero a mulher de Urias,
nunca vi corpo mais belo.
Quebrei a cítara, salmos não faço,
trono não quero, guerras parai.
Só quero a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Se olho as nuvens, se desço à terra
vejo os dois peitos.
A mulher de Urias estava tomando banho
no riozinho que passa
em frente de meu palácio:
eu via a mulher de Urias.
Não sou mais poeta,
troco meu trono
pelos dois peitos.
Se olho o mundo vejo os dois peitos.
Se olho o céu vejo os dois peitos.
Não sou mais rei, versos não faço.
Trono não quero.
Só quero a mulher de Urias.

Jorge de Lima




(Willem Drost (1633  - 1659) - Betseba com a carta de David, 1654)



segunda-feira, 26 de maio de 2025

Bocage - "Meu ser evaporei na lida insana..."



Meu ser evaporei na lida insana

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos:

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube

Bocage





quinta-feira, 22 de maio de 2025

Ana Monjardino - Bilhas de leite

 

BILHAS DE LEITE

Zé Manduca era o caseiro dos meus avós. Era um touro de força. E igualmente bruto.

A sua primeira tarefa do dia era ordenhar as vacas. Elas gostavam dele. Deixavam-se estar, tranquilas, enquanto ele as aliviava do excesso. Antes de seguirem para o pasto, havia sempre uma que se despedia com turras e encontrões que ele retribuía. Essa acabou por morrer no colo dele com um vitelo entalado. Trazia o leite ainda quente para o pequeno almoço dos patrõezinhos – o meu Pai e os seus quatro irmãos. Se não tivesse sobrado manteiga, pescava-se a nata com o dedo e comia-se no pão. Nas mãos dele, as bilhas até pareciam vazias. Num desafio de machos jovens, um dos meus tios tentou levantar uma. Nem se mexeu. A partir daí, Zé Manduca passou a herói. Mas quando bebia, metia medo. Bom tipo, mau vinho.

Desaparecia o resto do dia, nas suas tarefas de Hercules açoriano. Só se ouviam os latidos do Cara Negra, marcando os cantos da quinta, trotando no seu encalço como se fosse o dono.

Os meninos cresceram e foram estudar para o continente. Os meus avós mudaram-se para a Cidade e deixaram a quinta aos fetos-reais. Fora dela, Zé Manduca estava fora de contexto. Sem jeito. Ainda lhe deram um lugar na empresa da família. Nunca se adaptou.

Depois veio o progresso. A Cidade passou a ter semáforos. Abriu o Hiper. Na véspera da inauguração, mais de mil pessoas pernoitaram no parque de estacionamento. Choveu, como de costume. Um homem deu uma surra à mulher por ter gasto as economias de uma vida num trem de cozinha. Era em inox, justificava-se ela debaixo da pancada.

Numas férias grandes, o meu Pai foi visitá-lo. Encontrou-o velho e cansado de olhar para os pés. Não tinha nada para fazer. Isso não faz bem à cabeça de um homem. O meu Pai ainda propôs ensinar-lhe a ler. Disse que não tinha serventia para ele. Tal como ele não tinha para ninguém.

Alguém disse que o viu saltar da rocha, chamando às mãos o destino, tão pesado como as bilhas do leite.


Ana Monjardino



Publicado por Ana Marchand no blogue Escrever é triste 




segunda-feira, 19 de maio de 2025

Al Berto - pernoitas em mim




pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória… amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto

Rumor dos Fogos (1983)




quinta-feira, 15 de maio de 2025

Luciana Martins - desvelamento


 

desvelamento

minha configuração verdadeira
é só um monte de livros
uma vontade qualquer de amor
uma infância que adquiri na memória
a configuração de meu pranto
é feita só de ais
e a contextura de minha dor
é agora inenarrável

Luciana Martins


Lapidação da aurora (1996)




(Fotografia de Irene Carbonell)


segunda-feira, 12 de maio de 2025

Manuel da Fonseca - Tragédia




TRAGÉDIA

Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
— vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era «o Senhor António»!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
— que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: — Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão...

Manuel da Fonseca


Planície (1941)



(Fotografia de Augusto Gomes - Largo Dom João IV. Vila Viçosa, 2012)


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ricardo Silvestrin - Eu

 


EU

Véu que revela
e oculta
conforme a vontade
do vento.
Sombra do som,
senda no sonho,
aqui se esconde um eu
livre de mim e de você.
Aonde ele vai,
por que ele é assim,
ninguém pode saber.
Um eu em terceira pessoa.
Senhor absoluto
da sua casa de papel.

Ricardo Silvestrin

Porto Alegre, 1963


(Lido em Rua das Pretas)



(Ilustração de Heitor Isoda)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Manoel de Barros - Infância

 



INFÂNCIA

Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.

Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha de flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maça verde no prato.

Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis aos bois.

Manoel de Barros


Fonte: "Poesia Completa", Editora Leya, 2010. Originalmente publicado em: "Poesias", 1947.




(Fotografia de José Carlos Filizola)


domingo, 4 de maio de 2025

Rui Knopfli - Telegrama

 


TELEGRAMA

Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
        Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.

Rui Knopfli


Mangas Verdes com Sal (1969)



(Fotografia de Amélia Monteiro - Mãos, 2014)