segunda-feira, 28 de abril de 2025

João Guimarães Rosa - Isto é simples




ISTO É SIMPLES

Muda é a força (me dizem as árvores)
e a profundidade (me dizem as raízes)
e a pureza (me diz o trigo).

Nenhuma árvore me disse:
“Sou mais alta que todas”.

Nenhuma raiz me disse:
“Eu venho de mais fundo”.

E nunca o pão me disse:
“Não há nada como o pão”.

 João Guimarães Rosa




 (Fotografia de Ratão Diniz: Santarém Novo, PA)


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Jorge de Sena - “Nunca pensei viver…”

 

Capa da revista Flama


"NUNCA PENSEI VIVER..."

Nunca pensei viver para ver isto:
a liberdade – (e as promessas de liberdade)
restauradas. Não, na verdade, eu não pensava
– no negro desespero sem esperança viva –
que isto acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora, meu general?

Tantos morreram de opressão ou de amargura,
tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe-
E agora, povo português?

Essas promessas – há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos –
E agora, meu general?

E tu povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores
com que saúdas as promessas de liberdade ?
Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo que, numa hora única, te prometem ?
E agora, povo português?


SB, 27/4/74


Jorge de Sena


«IX  Poemas “políticos e afins”  (1972-1977)», em 40 anos de servidão, Moraes Editores, Lisboa, 1979


Depois da revolução dos cravos. Foto da imprensa: Leia a República




(Fotografias: Fundação CSSL Portimagem


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ana Paula Inácio - "Amanhã vou comprar umas calças vermelhas..."

 


Amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente
nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em códigos
toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.


Ana Paula Inácio


Vago Pressentimento Azul por Cima, 2000




(Fotografia de Andy Teo)


domingo, 20 de abril de 2025

Fernando Assis Pacheco - Os padrinhos morreram todos

 



OS PADRINHOS MORRERAM TODOS

Os padrinhos morreram todos
já não tenho folar da Páscoa
estou triste e descoroçoado
como um cachorrinho à chuva

se agora mexesse no meu sótão
era para adoecer ainda mais
do coração vendo os trastes velhos
debruados de pó

querendo alguém ser amável
evite falar-me dessas coisas
que doem muitas vezes
como um último fio de luz
na trama do crepúsculo
breve chispa
                      diluída entre as ondas

Fernando Assis Pacheco


A Profissão Dominante (1982), em A Musa Irregular. Assírio & Alvim, 2006




(Fotografia de Zé Pinho - Folar de Vale de Ílhavo..., 2008)


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Fernando Assis Pacheco - Páscoa


 

PÁSCOA

A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come

quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto

minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada eu venho
do pátio certamente cantando

o tio – as urinas presas
no laço da bexiga –
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto jovem
como ele Manuel sorte infeliz

ao tempo que isto foi


Fernando Assis Pacheco


Respiração Assistida, Assírio & Alvim, 2003




(Fotografia de Ricardo Vilaça - Talheres antigos, 2013)

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Eduardo Pitta - “Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz...”

 



Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz.
Quando era tudo de perfil. Nem podia ser
de outro modo: de perfil e em diorite
como nos retratos do Império Antigo. Muitos

iriam acolher depois os ritos do primitivo
estigma. Nos parques, na penumbra dos relvados,
ficou dessa queimadura uma legenda. Alguns
resistem. Paralisa-os a vertigem de uma estreita

afeição. No limite do conhecimento, a tremer
de alegria, encontram aquilo que
tinha sido esquecido. A cabeça entre as pernas
nem sempre se distingue de um sussurro

de lâminas. A música de tal desígnio percute
nas sílabas todas do inominado canto. Às vezes
por um punhado de lágrimas, equívoco maior.
É claro que a iniquidade continua impune.

Eduardo Pitta


Mais poemas no blogue Poemário

terça-feira, 1 de abril de 2025

Alexandre O’Neill - O amor é o amor


 

O AMOR É O AMOR

O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois? —
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?


Alexandre O'Neill


Abandono Vigiado (1960)




(Fotografia de Antonio Gutierrez)