quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Carlos Drummond de Andrade - Resíduo

 


RESÍDUO

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade



A rosa do povo (1945)



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Mario Quintana - Bar



BAR

No mármore da mesa escrevo
Letras que não formam nome algum.
O meu caixão será de mogno,
Os grilos cantarão na treva...
Fora, na grama fria, devem estar brilhando as gotas
pequeninas do orvalho.
Há sobre a mesa, um reflexo triste e vão
Que é o mesmo que vem dos óculos e das carecas.
Há um retrato do Marechal Deodoro proclamando a República.
E de tudo irradia, grave, uma obscura, uma lenta música...
Ah, meus pobres botões! eu bem quisera traduzir, para vós,
uns dois ou três compassos do Universo!...
Infelizmente não sei tocar violoncelo...
A vida é muito curta, mesmo...
E as estrelas não formam nenhum nome.

Mario Quintana


Aprendiz de feiticeiro (1950)


Umas palavras de Mario Quintana sobre si próprio (1984), dez anos antes de ele morrer.


“Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro — o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu… Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo — que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras”.




(Fotografia de Rodrigo Balan Uriartt no Bar Odeon de Porto Alegre, 2008)


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Eugénio de Andrade - O que fizeste das palavras?


 

O QUE FIZESTE DAS PALAVRAS?

O que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

Eugénio de Andrade


Matéria Solar (1980)




(Fotografía de Cheriished, Museu da Língua Portuguesa)


sábado, 19 de outubro de 2024

Manuel António Pina - O Quarto

 


O QUARTO

Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste

para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.

A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.

Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.

Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

Manuel António Pina


Como se Desenha uma Casa, Assírio & Alvim, 2011



(Fotografia de Camila Svenson - quarto, 2013)


Lemos e ouvimos “Esplanada”, de Manuel António Pina



É o primeiro poema de Manuel António Pina que recordo ter lido. Já foi publicado aqui em 2012, ano da sua morte, no Porto, a 19 de outubro. Agora podemos ouvi-lo também na voz de Pedro Lamares.



ESPLANADA


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Egito Gonçalves - Aldebaran


 

ALDEBARAN

Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham - como numa paragem de autocarro.
Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara ao limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentiamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatias sanduiches de realidade.

25.3.91


Egito Gonçalves



(Fotografia de Eleanora Grampasso)


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Manuel de Freitas - Estudos camonianos




ESTUDOS CAMONIANOS

Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,
gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,
alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.

Manuel de Freitas




Game over (2.ª edição, revista), Alambique, Lisboa, 2017.


(Lido em Hospedaria Camões)




(Fotografía de Paula Aparicio - Inés)


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Jorge de Sena - Elogio da vida monástica



ELOGIÓ DA VIDA MONÁSTICA  

Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo,
amortalhava-se em vida, fazia-se monge,
ou porque a vida lhe dera tudo e a agonia sobrevinha,
ou porque desistia de lutar com ela pelo que não vinha nunca
(nem mesmo sob a forma de agonia que facilitasse as coisas).
Depois, porque o espírito precisa de ocupar-se,
a pessoa tratava de salvar a própria alma,
de mortificar o corpo, e preparava-se para a morte
(um acidente para que só pelo acaso feliz de ter nascido,
uma pessoa, naquele tempo sem recurso algum,
estava, por estar viva, sempre preparada).
Era uma aposentadoria honrosa, olhada com respeito,
e que não podia deixar de encher a solidão
como gente e amor não tinham preenchido a vida.
Era um estar só, rodeado de calor humano,
sem os inconvenientes e a incomodidade
que o convívio humano traz consigo,
desde os sentimentos a mais aos sentidos a menos,
ou ao facto lamentável de quem amamos não cheirar
como quereríamos: a um misto de rosas e de sexo,
com alguma imaginação de como o amor cheira.

Hoje, não há mais mundo
de que uma pessoa possa retirar-se.
O mundo se retirou de nós. E a solidão
é como um convento gigantesco em que,
na rua, nos transportes coletivos, na cama,
olhamos a vizinhança com a mesma convicção
com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro
mutuamente se saudavam dizendo
que era preciso morrer.
Na dor, na alegria, no prazer, em tudo,
somos monges laicos cuja morte sobrevém
de uma qualquer maneira estúpida e sem graça.
E o nosso olhar de espanto não é o de termos sido
colhidos de surpresa antes de estar salva a alma,
mas o de ela estar salva, desde que o mundo
se retirou de nós. É o olhar de espanto do funcionário público
que descobre, ao contarem-lhe o tempo de aposentadoria,
que nunca figurara na folha de pagamento,
nem no quadro dos funcionários efetivos,
ou mesmo sequer nas listas do comissariado
do desemprego. Não tem direito sequer
à agonia que todavia sente como antigamente
era sentida a que justificava tudo:
o prazer de decidir entre duas coisas:
o ir ou o ficar, o estar ou o partir,
O ter-se uma alma que jogar e perder.

Jorge de Sena


40 Anos de Servidão, Edições 70, 1989



(Fotografia de César Augusto V. R. - "nem correntes, nem pedra, nem musgo./nem silêncio.", Convento de Cristo, Tomar)