quinta-feira, 3 de julho de 2025

Fernando Assis Pacheco - Lumiar, Lisboa: um melro na rampa da televisão

 



LUMIAR, LISBOA: UM MELRO
NA RAMPA DA TELEVISÃO


Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios
                              (à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol
                                               (do Verão a dar na tromba
como uma pedra
eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste
                                       (de crocodilo ao peito
envoltorio em águas tristes herdadas
             (dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades que estão
                        (para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis
                         (trazidos queimados de África incapaz
por todas as razões expostas de colar suficientemente
                              (à melopeia do verso heróico

um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano
              (tentando a sua vez de ser um fecho aceitável
o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana

Fernando Assis Pacheco


Memórias do contencioso (1980), in A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006


(Fotografia de Teresa QF)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Manuel Alegre - Estou triste




ESTOU TRISTE

Eu tinha grandes coisas para vos dizer
Porém não tenho tempo. Vou-me embora. Deixo-vos
com a vossa tristeza
mergulhada no vinho quieta envilecida.
Minha tristeza é mais pura
não se esconde no vinho não se esconde.
Precisa
de grandes gritos ao ar livre. De
partir à pedrada o copo
onde a vossa tristeza apodrece.
Precisa de correr. Apertar muitas mãos
encher as ruas de muita gente.
Precisa de batalhas
Precisa de cantar.

Manuel Alegre


Dois dados de cinepovero:

"Estou triste" in «Praça da Canção» (1969)
Mário Viegas in «País de Abril» (1974)
Música: José Afonso, "Que amor não me engana" (excerto) in «Venham mais Cinco» (1973).

 

Em depoimento ao diário "i" (26-03-2013, p. 19) Manuel Alegre escreveu: "Chipre, depois da Grécia e, de certo modo, nós próprios, fez-me perceber que esta Europa é uma fraude. Deixou de ser um projecto de paz e liberdade, começa a ser uma ameaça de tipo totalitário, com o objectivo de empobrecer e escravizar os países do Sul. Por isso é conveniente que nos sintamos todos cipriotas. Antes que chegue a nossa vez." Foi este o clic que desencadeou a ideia deste vídeo. Fotografias retiradas da internet. Os clips foram filmados em Lisboa, em 2 de Março de 2013.



sexta-feira, 27 de junho de 2025

Pedro Paixão - A casa frente ao videoclube

 



A casa frente ao videoclube

A casa frente ao videoclube vai ser abandonada. O que se puder salvar será transportado para outra casa. O que couber dentro de caixas, dentro de caixas: os livros lidos e por ler, os copos, as louças, os talheres. O que não couber dentro de caixas será transportado aos ombros de estóicos escravos: os quadros, o frigorífico, a máquina de lavar, os tapetes, as camas com os respectivos colchões. O piano, esse, voará pelo jardim. As coisas serão arrancadas do seu lugar, deixarão buracos, melancólicas falhas. A força da gravidade será, uma vez mais, cruelmente vencida. O que se não puder salvar ficará a habitar – sabe-se lá como e até quando - a casa doravante vazia. O que não se puder salvar é o mais precioso. As palavras - derrotadas e gloriosas - finamente sobrepostas camada sobre camada. Um gesto aflito e logo outro meigo. Uma perseguição pelos corredores da casa. O sono profundo do esquecimento. Os gritos misturados, tanto de dor como de prazer. E a semente do fogo. O fogo já lá estava desde o começo de tudo.

A casa frente ao videoclube não devia ser abandonada. Devia ser arrasada, incendiada, oferecida em sacrifício. Ninguém poderá narrar a história de uma casa que foi túmulo de tantos desejos e insensatas ambições, antro de vícios e teatro de prazeres, gruta e refúgio de desvairados poetas, inúteis seres. Uma casa que ainda ouviu Píndaro falar em grego, onde se rezou a Jesus de joelhos no chão, que foi roubada por ladrões encartados e outros menos peritos. Uma casa onde alguns enlouqueceram e depois ficaram lúcidos e, outros, lúcidos enlouqueceram. Onde muitos se embriagaram de vinho e fumos e poderosos licores. Onde alguém se quis matar e não o deixaram. Uma casa onde a beleza era uma deusa antiga que surgia quando bem queria e sob os mais variados disfarces: suave música, excelentes versos, asfixiantes corpos nus de mulheres. Uma casa por vezes assolada por ventos de desordem e tumulto - um espectáculo medonho - e depois recomposta numa harmonia em que o resultado era atingido. Uma casa vertida em lágrimas, atingida pela dor, e depois despedaçada por fortes gargalhadas em que se fazia pouco da burocracia do mundo, da mesquinhez da multidão. Viva, e depois morta, para de novo poder renascer quando menos se esperasse.

Nada restará da casa frente ao videoclube.


Pedro Paixão

(aqui)



segunda-feira, 23 de junho de 2025

Alexandre O’Neill - Estórias Quadradinhas: Marjorie Freitas


 

Estórias Quadradinhas: Marjorie Freitas 

   Marjorie. Tu.
   Escondias, Marjorie, as bolas de ténis soblusa? De raquete peneirando o ar, Mar, como coravas ao passar por mim, lesma escorrendo pelo muro!
   Lesma com coração de pardal, era eu quem passava por ti, Mar, quando tu – branca, loura, rósea, azul – passavas!
   Lesma-relógio-de-sol no muro. Relógio de sol com descompassos de relógio de corda.
   Marjorie de um verão – de raquete peneirando o tempo!


   Mrs. Freitas. Você?
   Que fez você dos seus quinze anos? Freitas é um boçal. Não é? Ora… Inglesa do cabo submarino nas mãos de corticeiro alentejano. Seis filhos. Sabe que mais? Mulher quer é estabilidade, segurança. Uma vara de filhos. Fins-de-semana no monte. Férias no monte. A manápula do Freitas na garupa, como se diz em português-macho. Ou no copo?
   Que fez você, Marjorie, dos seus quinze anos?
   Lesma engravatada, escorro entre muros e traições. Que fiz eu dos meus quinze?
   Marjorie. Mar.
    As bolas de ténis soblusa?

Alexandre O'Neill


Dezanove poemas (1983)



(Fotografia de Giulia Galeno)


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Mario Quintana - Um poema?




UM POEMA?

No mundo não há nada mais triste do que uma boneca morta...
Talvez porque sua mãezinha tenha morrido de parto!
Ou encontrar um vestido de noiva numa casa de penhores
Ou começar cheio de rimas quando se escreve em prosa
Ou não encontrar rimas quando se escreve em verso
(Também, quem me mandou escrever clássico?!)
Bendita seja a Isadora Duncan, que inventou o verso livre da dança!
Só não sei,
Mesmo,
O que eu queria dizer com tudo isso...

Mario Quintana

 Velório sem defunto (1990)



segunda-feira, 16 de junho de 2025

Murilo Mendes - Frutas da infância e post

 



FRUTAS DA INFÂNCIA E POST

O jambo. O tamarindo. A guabiroba.
A uvaia. A pitanga. A carambola.
A pitangueira dá pitangas e indigestão.
Os uivos da uvaia. A raiva da cabeluda. A força da banana. O ácido do araçá.

O cântico do cambucá nos canais do intestino.

A sublevação dos indígenas alimentos frutais ingeridos e indigeridos.
O odre podre de qualquer fruta.
As comadrices da tangerina. O ubre convexo da mamoa.
O verdeveronese das frutas. As veludosas amarelezas do mamão.
Os passeios do limão nas alamedas de tangerineiras.
A fruta-de-conde. A fruta-de-condessa. Principalmente a fruta-de-condessa.
A fúria do abacaxi. A relva do abacate. A soledade da grumixama. A ironia da goiaba. A explosão
da manga-espada. A glória do maracujá. O peito da laranja. O asco da toronja.

O preto da jabuticaba. As pretas da jabuticabeira. As tetas das pretas na jabuticabeira.


O sorriso em flor da canela. As congeminações da noz-moscada. Os esgares da pimenta desacompanhada da hortelã.

Morder a realidade, a matéria mordível e mordente, a universal tangerina, a fruta-esfera da terra. Saborear o sumo de todas as coisas somadas. O sumo do universo, o saber do sabor, o sabor do saber.

Murilo Mendes



(Fotografía de Eduardo Hanazaki, Pitanga)


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa - «Ah a frescura na face de não cumprir um dever!»


Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

17-6-1929


Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993)