sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ricardo Silvestrin - Eu

 


EU

Véu que revela
e oculta
conforme a vontade
do vento.
Sombra do som,
senda no sonho,
aqui se esconde um eu
livre de mim e de você.
Aonde ele vai,
por que ele é assim,
ninguém pode saber.
Um eu em terceira pessoa.
Senhor absoluto
da sua casa de papel.

Ricardo Silvestrin

Porto Alegre, 1963


(Lido em Rua das Pretas)



(Ilustração de Heitor Isoda)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Manoel de Barros - Infância

 



INFÂNCIA

Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.

Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha de flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maça verde no prato.

Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis aos bois.

Manoel de Barros


Fonte: "Poesia Completa", Editora Leya, 2010. Originalmente publicado em: "Poesias", 1947.




(Fotografia de José Carlos Filizola)


domingo, 4 de maio de 2025

Rui Knopfli - Telegrama

 


TELEGRAMA

Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
        Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.

Rui Knopfli


Mangas Verdes com Sal (1969)



(Fotografia de Amélia Monteiro - Mãos, 2014)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

João Guimarães Rosa - Isto é simples




ISTO É SIMPLES

Muda é a força (me dizem as árvores)
e a profundidade (me dizem as raízes)
e a pureza (me diz o trigo).

Nenhuma árvore me disse:
“Sou mais alta que todas”.

Nenhuma raiz me disse:
“Eu venho de mais fundo”.

E nunca o pão me disse:
“Não há nada como o pão”.

 João Guimarães Rosa




 (Fotografia de Ratão Diniz: Santarém Novo, PA)


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Jorge de Sena - “Nunca pensei viver…”

 

Capa da revista Flama


"NUNCA PENSEI VIVER..."

Nunca pensei viver para ver isto:
a liberdade – (e as promessas de liberdade)
restauradas. Não, na verdade, eu não pensava
– no negro desespero sem esperança viva –
que isto acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora, meu general?

Tantos morreram de opressão ou de amargura,
tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe-
E agora, povo português?

Essas promessas – há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos –
E agora, meu general?

E tu povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores
com que saúdas as promessas de liberdade ?
Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo que, numa hora única, te prometem ?
E agora, povo português?


SB, 27/4/74


Jorge de Sena


«IX  Poemas “políticos e afins”  (1972-1977)», em 40 anos de servidão, Moraes Editores, Lisboa, 1979


Depois da revolução dos cravos. Foto da imprensa: Leia a República




(Fotografias: Fundação CSSL Portimagem


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ana Paula Inácio - "Amanhã vou comprar umas calças vermelhas..."

 


Amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente
nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em códigos
toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.


Ana Paula Inácio


Vago Pressentimento Azul por Cima, 2000




(Fotografia de Andy Teo)


domingo, 20 de abril de 2025

Fernando Assis Pacheco - Os padrinhos morreram todos

 



OS PADRINHOS MORRERAM TODOS

Os padrinhos morreram todos
já não tenho folar da Páscoa
estou triste e descoroçoado
como um cachorrinho à chuva

se agora mexesse no meu sótão
era para adoecer ainda mais
do coração vendo os trastes velhos
debruados de pó

querendo alguém ser amável
evite falar-me dessas coisas
que doem muitas vezes
como um último fio de luz
na trama do crepúsculo
breve chispa
                      diluída entre as ondas

Fernando Assis Pacheco


A Profissão Dominante (1982), em A Musa Irregular. Assírio & Alvim, 2006




(Fotografia de Zé Pinho - Folar de Vale de Ílhavo..., 2008)