quinta-feira, 10 de julho de 2025

Isabela Figueiredo - O tio da PIDE

Fotografia de Arrêtez la musique


O TIO DA PIDE

Esta noite não dormi mais que duas horas. Rebolei na cama, procurando posição, queixando-me dos ossos, mas era outra coisa. Era a breve carta, as suas frases bem construídas, as palavras amigáveis que não me largavam.

O meu tio Jota escreveu-me. A minha mãe entregou-me a carta, li-a toda na cozinha, imóvel, olhando para o terraço dos prédios vizinhos; o meu filho chegou da escola, tirou-me a folha das mãos, passou-lhe os olhos por cima, e disse, "não sei por que que é que estás assim. É só uma carta e o homem parece bué fixe".

A última vez que vi o meu tio bué fixe foi há uns bons 25 anos. Fomos encontrá-lo a Sevilha, porque não entrava em Portugal desde o 25 de Abril. Foi um dos mais laboriosos informadores da PIDE. Trabalhava no Governo Civil, quer dizer, tinha lá uma secretária com carimbos, mas o seu emprego principal era ouvir com atenção, procurar significados ocultos e relatar com o máximo de precisão a matéria recebida. Tinha um caderninho no bolso interior do casaco e aproveitava as idas à casa-de-banho para anotar frases ou expressões consideradas relevantes. Pisgou-se no dia da Revolução e nunca mais a pátria o viu. Depois disso telefonava à família inesperadamente, duas vezes por ano, Páscoa e Natal. Seguia-nos o rasto, nunca se percebia como. Sei que depois de o meu pai regressar de Moçambique, chegaram a combinar pelo telefone um dia e hora para nos encontrarmos do outro lado da fronteira.

Tinha visto o meu tio João uma vez na vida, porque fora a Moçambique de visita, era eu muito pequena. Levou-me prendas, passeou-me. Tinha a impressão de me recordar de um belo homem de barba escura todo vestido de branco. O 25 de Abril levou-o para o estrangeiro, onde existiu durante décadas, congeminando contra a democracia, recrutando mercenários para combater nas guerras civis das ex-colónias, traficando armas ou diamantes, e conseguindo financiamento para os movimentos de direita que iam aflorando. Um traste. Um daqueles indivíduos que nunca foi capaz de se livrar das suas piores convicções, defendendo que os homens nascem diferentes, e que é preciso discipliná-los para que não levantem a crista. Há sempre indivíduos como este. Alguém que finge, que procura safar-se.

Quando o conheci em Sevilha, trazia consigo uma amante loura parecida com a Odete Saint-Maurice, com mise cheia de laca, retornada de Angola, que passou o tempo a reclamar de tudo. Era esteticista e fazia depilação brasileira. O meu tio caminhava connosco empurrando-a levemente com o braço enlaçado na cintura e a mão toda aberta sobre a anca redonda. O meu pai perguntou-lhe quando regressava à terra. Podiam comprar um terreno em conjunto. O tio Jota respondeu que o regressaria no dia em que o meu pai voltasse a Moçambique. E o meu pai riu-se, como se isso não lhe passasse pela cabeça. Como se não sonhasse todas as noites em regressar à terra a que os ingratos dos pretos agora chamavam deles.

Nessa ida a Espanha comprámos rebuçados e sucedâneo de chocolate e regressámos comentando que o tio Jota já tinha idade para ter juízo, que era uma vida incerta, insegura, ninguém sabia dele, nem onde nem quando, etc, etc. E que a loira era um coirão. Eu não disse nada, porque eu nunca dizia nada. Aguardava uma brecha no muro. Um momento para escapar.

Quem morreu não devia ressuscitar para nos atormentar as noites. Se o tio Jota estava morto, devia ter continuado. Quer regressar a Portugal?! Está velho?! Então, mas não se está lá tão bem na Europa do norte?! O que me interessa que se sinta velho e pretenda, agora, regressar para junto da família, acarinhar a sobrinha, deixar-lhe o pouco que tem?! Não temos espaço para ele. Não queremos e não podemos. Não o conhecemos. Correr-me parte do seu sangue nas veias não significa coisa alguma. Também me corre nas veias sangue dum cristão novo cujo nome não consigo adivinhar, e dum missionário italiano que fornicou de pé, na sacristia, com o devido fruto, a menina dos Cristovãos, minha trisavó. Quem são, onde estão, que idade têm? Sabemos nós lá. tudo passa. O tempo engole as circunstâncias.

Isabela Figueiredo


Publicado a 21 de abril de 2017 no seu blogue Novo Mundo



segunda-feira, 7 de julho de 2025

Sophia de Mello Breyner Andresen - Data


DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

Sophia de Mello Breyner Andresen





(Fotografia de Camila Baumhak)


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Fernando Assis Pacheco - Lumiar, Lisboa: um melro na rampa da televisão

 



LUMIAR, LISBOA: UM MELRO
NA RAMPA DA TELEVISÃO


Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios
                              (à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol
                                               (do Verão a dar na tromba
como uma pedra
eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste
                                       (de crocodilo ao peito
envoltorio em águas tristes herdadas
             (dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades que estão
                        (para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis
                         (trazidos queimados de África incapaz
por todas as razões expostas de colar suficientemente
                              (à melopeia do verso heróico

um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano
              (tentando a sua vez de ser um fecho aceitável
o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana

Fernando Assis Pacheco


Memórias do contencioso (1980), in A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006


(Fotografia de Teresa QF)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Manuel Alegre - Estou triste




ESTOU TRISTE

Eu tinha grandes coisas para vos dizer
Porém não tenho tempo. Vou-me embora. Deixo-vos
com a vossa tristeza
mergulhada no vinho quieta envilecida.
Minha tristeza é mais pura
não se esconde no vinho não se esconde.
Precisa
de grandes gritos ao ar livre. De
partir à pedrada o copo
onde a vossa tristeza apodrece.
Precisa de correr. Apertar muitas mãos
encher as ruas de muita gente.
Precisa de batalhas
Precisa de cantar.

Manuel Alegre


Dois dados de cinepovero:

"Estou triste" in «Praça da Canção» (1969)
Mário Viegas in «País de Abril» (1974)
Música: José Afonso, "Que amor não me engana" (excerto) in «Venham mais Cinco» (1973).

 

Em depoimento ao diário "i" (26-03-2013, p. 19) Manuel Alegre escreveu: "Chipre, depois da Grécia e, de certo modo, nós próprios, fez-me perceber que esta Europa é uma fraude. Deixou de ser um projecto de paz e liberdade, começa a ser uma ameaça de tipo totalitário, com o objectivo de empobrecer e escravizar os países do Sul. Por isso é conveniente que nos sintamos todos cipriotas. Antes que chegue a nossa vez." Foi este o clic que desencadeou a ideia deste vídeo. Fotografias retiradas da internet. Os clips foram filmados em Lisboa, em 2 de Março de 2013.



sexta-feira, 27 de junho de 2025

Pedro Paixão - A casa frente ao videoclube

 



A casa frente ao videoclube

A casa frente ao videoclube vai ser abandonada. O que se puder salvar será transportado para outra casa. O que couber dentro de caixas, dentro de caixas: os livros lidos e por ler, os copos, as louças, os talheres. O que não couber dentro de caixas será transportado aos ombros de estóicos escravos: os quadros, o frigorífico, a máquina de lavar, os tapetes, as camas com os respectivos colchões. O piano, esse, voará pelo jardim. As coisas serão arrancadas do seu lugar, deixarão buracos, melancólicas falhas. A força da gravidade será, uma vez mais, cruelmente vencida. O que se não puder salvar ficará a habitar – sabe-se lá como e até quando - a casa doravante vazia. O que não se puder salvar é o mais precioso. As palavras - derrotadas e gloriosas - finamente sobrepostas camada sobre camada. Um gesto aflito e logo outro meigo. Uma perseguição pelos corredores da casa. O sono profundo do esquecimento. Os gritos misturados, tanto de dor como de prazer. E a semente do fogo. O fogo já lá estava desde o começo de tudo.

A casa frente ao videoclube não devia ser abandonada. Devia ser arrasada, incendiada, oferecida em sacrifício. Ninguém poderá narrar a história de uma casa que foi túmulo de tantos desejos e insensatas ambições, antro de vícios e teatro de prazeres, gruta e refúgio de desvairados poetas, inúteis seres. Uma casa que ainda ouviu Píndaro falar em grego, onde se rezou a Jesus de joelhos no chão, que foi roubada por ladrões encartados e outros menos peritos. Uma casa onde alguns enlouqueceram e depois ficaram lúcidos e, outros, lúcidos enlouqueceram. Onde muitos se embriagaram de vinho e fumos e poderosos licores. Onde alguém se quis matar e não o deixaram. Uma casa onde a beleza era uma deusa antiga que surgia quando bem queria e sob os mais variados disfarces: suave música, excelentes versos, asfixiantes corpos nus de mulheres. Uma casa por vezes assolada por ventos de desordem e tumulto - um espectáculo medonho - e depois recomposta numa harmonia em que o resultado era atingido. Uma casa vertida em lágrimas, atingida pela dor, e depois despedaçada por fortes gargalhadas em que se fazia pouco da burocracia do mundo, da mesquinhez da multidão. Viva, e depois morta, para de novo poder renascer quando menos se esperasse.

Nada restará da casa frente ao videoclube.


Pedro Paixão

(aqui)



segunda-feira, 23 de junho de 2025

Alexandre O’Neill - Estórias Quadradinhas: Marjorie Freitas


 

Estórias Quadradinhas: Marjorie Freitas 

   Marjorie. Tu.
   Escondias, Marjorie, as bolas de ténis soblusa? De raquete peneirando o ar, Mar, como coravas ao passar por mim, lesma escorrendo pelo muro!
   Lesma com coração de pardal, era eu quem passava por ti, Mar, quando tu – branca, loura, rósea, azul – passavas!
   Lesma-relógio-de-sol no muro. Relógio de sol com descompassos de relógio de corda.
   Marjorie de um verão – de raquete peneirando o tempo!


   Mrs. Freitas. Você?
   Que fez você dos seus quinze anos? Freitas é um boçal. Não é? Ora… Inglesa do cabo submarino nas mãos de corticeiro alentejano. Seis filhos. Sabe que mais? Mulher quer é estabilidade, segurança. Uma vara de filhos. Fins-de-semana no monte. Férias no monte. A manápula do Freitas na garupa, como se diz em português-macho. Ou no copo?
   Que fez você, Marjorie, dos seus quinze anos?
   Lesma engravatada, escorro entre muros e traições. Que fiz eu dos meus quinze?
   Marjorie. Mar.
    As bolas de ténis soblusa?

Alexandre O'Neill


Dezanove poemas (1983)



(Fotografia de Giulia Galeno)


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Mario Quintana - Um poema?




UM POEMA?

No mundo não há nada mais triste do que uma boneca morta...
Talvez porque sua mãezinha tenha morrido de parto!
Ou encontrar um vestido de noiva numa casa de penhores
Ou começar cheio de rimas quando se escreve em prosa
Ou não encontrar rimas quando se escreve em verso
(Também, quem me mandou escrever clássico?!)
Bendita seja a Isadora Duncan, que inventou o verso livre da dança!
Só não sei,
Mesmo,
O que eu queria dizer com tudo isso...

Mario Quintana

 Velório sem defunto (1990)



segunda-feira, 16 de junho de 2025

Murilo Mendes - Frutas da infância e post

 



FRUTAS DA INFÂNCIA E POST

O jambo. O tamarindo. A guabiroba.
A uvaia. A pitanga. A carambola.
A pitangueira dá pitangas e indigestão.
Os uivos da uvaia. A raiva da cabeluda. A força da banana. O ácido do araçá.

O cântico do cambucá nos canais do intestino.

A sublevação dos indígenas alimentos frutais ingeridos e indigeridos.
O odre podre de qualquer fruta.
As comadrices da tangerina. O ubre convexo da mamoa.
O verdeveronese das frutas. As veludosas amarelezas do mamão.
Os passeios do limão nas alamedas de tangerineiras.
A fruta-de-conde. A fruta-de-condessa. Principalmente a fruta-de-condessa.
A fúria do abacaxi. A relva do abacate. A soledade da grumixama. A ironia da goiaba. A explosão
da manga-espada. A glória do maracujá. O peito da laranja. O asco da toronja.

O preto da jabuticaba. As pretas da jabuticabeira. As tetas das pretas na jabuticabeira.


O sorriso em flor da canela. As congeminações da noz-moscada. Os esgares da pimenta desacompanhada da hortelã.

Morder a realidade, a matéria mordível e mordente, a universal tangerina, a fruta-esfera da terra. Saborear o sumo de todas as coisas somadas. O sumo do universo, o saber do sabor, o sabor do saber.

Murilo Mendes



(Fotografía de Eduardo Hanazaki, Pitanga)


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa - «Ah a frescura na face de não cumprir um dever!»


Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

17-6-1929


Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993)



terça-feira, 10 de junho de 2025

Luís de Camões - “Que me quereis, perpétuas saudades?…”

 


Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões 



(Fotografia de György Kepes)


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Adélia Prado - Briga no beco

 


BRIGA NO BECO   

Encontrei o meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Adélia Prado


Bagagem (1976)



(Fotografia de Eduardo Hanazaki: Numa mesa de boteco, 2009)


quarta-feira, 4 de junho de 2025

Jorge de Sena - Cantiga de Maio

 

CANTIGA DE MAIO

Da prisão negra em que estavas
a porta abriu-se p’ra rua.
Já sem algemas escravas,
igual à cor que sonhavas,
vais vestida de estar nua.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Na rua passas cantando,
e o povo canta contigo.
Por onde tu vais passando
mais gente se vai juntando,
porque o povo é teu amigo.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Entre o povo que te aclama,
contente de poder ver-te,
há gente que por ti chama
para arrastar-te na lama
em que outros irão prender-te.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Muitos correndo apressados
querem ter-te só p’ra si;
e gritam tão de esganados
só por tachos cobiçados,
e não por amor de ti.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Na sombra dos seus salões
de mandar em companhias,
poderosos figurões
afiam já os facões
com que matar alegrias.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

E além do mar oceano
o maligno grão poder
já se apresta p’ra teu dano,
todo violência e engano,
para deitar-te a perder.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Com desordens, falsidade,
economia desfeita;
com calculada maldade,
promessas de felicidade
e a miséria mais estreita.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Que muito povo se assuste,
julgando que és culpada,
eis o terrível embuste
por qualquer preço que custe
com que te armam a cilada.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

Tens de saber que o inimigo
quer matar-te à falsa-fé.
Ah tem cuidado contigo;
quem te respeita é um amigo,
quem não respeita não é.

Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

                     Santa Bárbara, 4/6/1974


Jorge de Sena




quinta-feira, 29 de maio de 2025

Jorge de Lima - Canção de Davi na janela




CANÇÃO DE DAVI NA JANELA

A mulher de Urias estava tomando banho.
Eu vi a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Quebrei a cítara, versos não faço,
eu vi a mulher de Urias,
peitos mais belos nunca hei de ver.
A mulher de Urias estava tomando banho
em frente ao meu palácio.
Quero a mulher de Urias,
nunca vi corpo mais belo.
Quebrei a cítara, salmos não faço,
trono não quero, guerras parai.
Só quero a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Se olho as nuvens, se desço à terra
vejo os dois peitos.
A mulher de Urias estava tomando banho
no riozinho que passa
em frente de meu palácio:
eu via a mulher de Urias.
Não sou mais poeta,
troco meu trono
pelos dois peitos.
Se olho o mundo vejo os dois peitos.
Se olho o céu vejo os dois peitos.
Não sou mais rei, versos não faço.
Trono não quero.
Só quero a mulher de Urias.

Jorge de Lima




(Willem Drost (1633  - 1659) - Betseba com a carta de David, 1654)



segunda-feira, 26 de maio de 2025

Bocage - "Meu ser evaporei na lida insana..."



Meu ser evaporei na lida insana

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos:

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube

Bocage





quinta-feira, 22 de maio de 2025

Ana Monjardino - Bilhas de leite

 

BILHAS DE LEITE

Zé Manduca era o caseiro dos meus avós. Era um touro de força. E igualmente bruto.

A sua primeira tarefa do dia era ordenhar as vacas. Elas gostavam dele. Deixavam-se estar, tranquilas, enquanto ele as aliviava do excesso. Antes de seguirem para o pasto, havia sempre uma que se despedia com turras e encontrões que ele retribuía. Essa acabou por morrer no colo dele com um vitelo entalado. Trazia o leite ainda quente para o pequeno almoço dos patrõezinhos – o meu Pai e os seus quatro irmãos. Se não tivesse sobrado manteiga, pescava-se a nata com o dedo e comia-se no pão. Nas mãos dele, as bilhas até pareciam vazias. Num desafio de machos jovens, um dos meus tios tentou levantar uma. Nem se mexeu. A partir daí, Zé Manduca passou a herói. Mas quando bebia, metia medo. Bom tipo, mau vinho.

Desaparecia o resto do dia, nas suas tarefas de Hercules açoriano. Só se ouviam os latidos do Cara Negra, marcando os cantos da quinta, trotando no seu encalço como se fosse o dono.

Os meninos cresceram e foram estudar para o continente. Os meus avós mudaram-se para a Cidade e deixaram a quinta aos fetos-reais. Fora dela, Zé Manduca estava fora de contexto. Sem jeito. Ainda lhe deram um lugar na empresa da família. Nunca se adaptou.

Depois veio o progresso. A Cidade passou a ter semáforos. Abriu o Hiper. Na véspera da inauguração, mais de mil pessoas pernoitaram no parque de estacionamento. Choveu, como de costume. Um homem deu uma surra à mulher por ter gasto as economias de uma vida num trem de cozinha. Era em inox, justificava-se ela debaixo da pancada.

Numas férias grandes, o meu Pai foi visitá-lo. Encontrou-o velho e cansado de olhar para os pés. Não tinha nada para fazer. Isso não faz bem à cabeça de um homem. O meu Pai ainda propôs ensinar-lhe a ler. Disse que não tinha serventia para ele. Tal como ele não tinha para ninguém.

Alguém disse que o viu saltar da rocha, chamando às mãos o destino, tão pesado como as bilhas do leite.


Ana Monjardino



Publicado por Ana Marchand no blogue Escrever é triste 




segunda-feira, 19 de maio de 2025

Al Berto - pernoitas em mim




pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória… amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto

Rumor dos Fogos (1983)




quinta-feira, 15 de maio de 2025

Luciana Martins - desvelamento


 

desvelamento

minha configuração verdadeira
é só um monte de livros
uma vontade qualquer de amor
uma infância que adquiri na memória
a configuração de meu pranto
é feita só de ais
e a contextura de minha dor
é agora inenarrável

Luciana Martins


Lapidação da aurora (1996)




(Fotografia de Irene Carbonell)


segunda-feira, 12 de maio de 2025

Manuel da Fonseca - Tragédia




TRAGÉDIA

Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
— vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era «o Senhor António»!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
— que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: — Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão...

Manuel da Fonseca


Planície (1941)



(Fotografia de Augusto Gomes - Largo Dom João IV. Vila Viçosa, 2012)


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ricardo Silvestrin - Eu

 


EU

Véu que revela
e oculta
conforme a vontade
do vento.
Sombra do som,
senda no sonho,
aqui se esconde um eu
livre de mim e de você.
Aonde ele vai,
por que ele é assim,
ninguém pode saber.
Um eu em terceira pessoa.
Senhor absoluto
da sua casa de papel.

Ricardo Silvestrin

Porto Alegre, 1963


(Lido em Rua das Pretas)



(Ilustração de Heitor Isoda)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Manoel de Barros - Infância

 



INFÂNCIA

Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.

Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha de flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maça verde no prato.

Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis aos bois.

Manoel de Barros


Fonte: "Poesia Completa", Editora Leya, 2010. Originalmente publicado em: "Poesias", 1947.




(Fotografia de José Carlos Filizola)


domingo, 4 de maio de 2025

Rui Knopfli - Telegrama

 


TELEGRAMA

Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
        Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.

Rui Knopfli


Mangas Verdes com Sal (1969)



(Fotografia de Amélia Monteiro - Mãos, 2014)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

João Guimarães Rosa - Isto é simples




ISTO É SIMPLES

Muda é a força (me dizem as árvores)
e a profundidade (me dizem as raízes)
e a pureza (me diz o trigo).

Nenhuma árvore me disse:
“Sou mais alta que todas”.

Nenhuma raiz me disse:
“Eu venho de mais fundo”.

E nunca o pão me disse:
“Não há nada como o pão”.

 João Guimarães Rosa




 (Fotografia de Ratão Diniz: Santarém Novo, PA)


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Jorge de Sena - “Nunca pensei viver…”

 

Capa da revista Flama


"NUNCA PENSEI VIVER..."

Nunca pensei viver para ver isto:
a liberdade – (e as promessas de liberdade)
restauradas. Não, na verdade, eu não pensava
– no negro desespero sem esperança viva –
que isto acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora, meu general?

Tantos morreram de opressão ou de amargura,
tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe-
E agora, povo português?

Essas promessas – há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos –
E agora, meu general?

E tu povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores
com que saúdas as promessas de liberdade ?
Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo que, numa hora única, te prometem ?
E agora, povo português?


SB, 27/4/74


Jorge de Sena


«IX  Poemas “políticos e afins”  (1972-1977)», em 40 anos de servidão, Moraes Editores, Lisboa, 1979


Depois da revolução dos cravos. Foto da imprensa: Leia a República




(Fotografias: Fundação CSSL Portimagem


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ana Paula Inácio - "Amanhã vou comprar umas calças vermelhas..."

 


Amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente
nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em códigos
toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.


Ana Paula Inácio


Vago Pressentimento Azul por Cima, 2000




(Fotografia de Andy Teo)


domingo, 20 de abril de 2025

Fernando Assis Pacheco - Os padrinhos morreram todos

 



OS PADRINHOS MORRERAM TODOS

Os padrinhos morreram todos
já não tenho folar da Páscoa
estou triste e descoroçoado
como um cachorrinho à chuva

se agora mexesse no meu sótão
era para adoecer ainda mais
do coração vendo os trastes velhos
debruados de pó

querendo alguém ser amável
evite falar-me dessas coisas
que doem muitas vezes
como um último fio de luz
na trama do crepúsculo
breve chispa
                      diluída entre as ondas

Fernando Assis Pacheco


A Profissão Dominante (1982), em A Musa Irregular. Assírio & Alvim, 2006




(Fotografia de Zé Pinho - Folar de Vale de Ílhavo..., 2008)


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Fernando Assis Pacheco - Páscoa


 

PÁSCOA

A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come

quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto

minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada eu venho
do pátio certamente cantando

o tio – as urinas presas
no laço da bexiga –
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto jovem
como ele Manuel sorte infeliz

ao tempo que isto foi


Fernando Assis Pacheco


Respiração Assistida, Assírio & Alvim, 2003




(Fotografia de Ricardo Vilaça - Talheres antigos, 2013)

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Eduardo Pitta - “Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz...”

 



Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz.
Quando era tudo de perfil. Nem podia ser
de outro modo: de perfil e em diorite
como nos retratos do Império Antigo. Muitos

iriam acolher depois os ritos do primitivo
estigma. Nos parques, na penumbra dos relvados,
ficou dessa queimadura uma legenda. Alguns
resistem. Paralisa-os a vertigem de uma estreita

afeição. No limite do conhecimento, a tremer
de alegria, encontram aquilo que
tinha sido esquecido. A cabeça entre as pernas
nem sempre se distingue de um sussurro

de lâminas. A música de tal desígnio percute
nas sílabas todas do inominado canto. Às vezes
por um punhado de lágrimas, equívoco maior.
É claro que a iniquidade continua impune.

Eduardo Pitta


Mais poemas no blogue Poemário

terça-feira, 1 de abril de 2025

Alexandre O’Neill - O amor é o amor


 

O AMOR É O AMOR

O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois? —
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?


Alexandre O'Neill


Abandono Vigiado (1960)




(Fotografia de Antonio Gutierrez)


segunda-feira, 31 de março de 2025

Teresa Dias Coelho - Mas há um dia...


Mas há um dia...

É danado, mas há um dia, que, sabe-se lá porquê (até se sabe) tomamos consciência da nossa "finitude", morrem-nos os amigos, as referências de geração, ou de forma de estar, ficamos cada vez mais sós, cá nos aguentamos, que somos dessa espécie, a de nos aguentarmos, sobreviventes, por isso mesmo tenham cuidado connosco, não temos nada a perder e podemos ir aos limites do que possam imaginar, se é que podem imaginar seja o que for.

Teresa Dias Coelho





(N.B.  Acho que este post deve ser do ano 2019, mas não estou certo. Lamento)


sexta-feira, 28 de março de 2025

António Reis - “Mudamos esta noite…”


 

Mudamos esta noite.

E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas
e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias

António Reis


Poemas quotidianos (1967). Há uma edição da Tinta da China de 2017 com prefácio de Fernando J.B. Martinho e posfácio de António Sapinho.

Blog António Reis (último post: 25-9-2020)



(Fotografia de Pedro Couto e Santos)

segunda-feira, 24 de março de 2025

Manuel Bandeira - Rimancete


RIMANCETE

À dona do seu encanto,
À bem amada pudica,
Por quem se desvela tanto,
Por quem tanto se dedica,
Olhos lavados em pranto
O seu amante suplica:

O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te meus olhos (disse ela),
Os meus olhos sim senhor…
— Ai, não me fales assim!
Que uma esperança tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus lábios (disse ela),
Os meus lábios sim senhor
— Ai não me enganes assim!
sonho meu! Coisa tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te as minhas mãos (disse ela),
As minhas mãos sim senhor…
— Não me escarneças assim!
Bem sei que prenda tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus peitos (disse ela),
Os meus peitos sim senhor…
— Não me tortures assim!
Mentes! Dádiva tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Minha rosa e minha vida
Que por perdê-la perdida,
Me desfaleço de dor…
— Não me enlouqueças assim,
Vida minha! Flor tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela?
— Deixas-me triste e sombria.
Cismo… Não atino o quê…
Dava-te quanto podia…
Que queres mais que te dê?

Responde o moço destarte:
— Teu pensamento quero eu!
— Isso não… não posso dar-te…
Que há muito tempo ele é teu…

Manuel Bandeira


Carnaval (1919)



(Fotografia de André Mantelli - Segredos de carnaval, 2010)


quinta-feira, 20 de março de 2025

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - “Soneto Já Antigo”


 

III

Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes

(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...

(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913


“Três Sonetos” Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 2.

1ª publ. com o título “Soneto Já Antigo” in Contemporânea, nº 6. Lisboa: Dez. 1922.


(http://arquivopessoa.net/textos/4390)



segunda-feira, 17 de março de 2025

José Tolentino Mendonça - O teu rosto aos vinte e cinco anos de idade



O TEU ROSTO AOS VINTE E CINCO ANOS DE IDADE

Numa conversa sobre o destino da arte
lembro o teu rosto
onde os elementos ensaiam
a revelação dos primeiros detalhes
irremediáveis:
a marca da sombra, o recuo das forças,
o alarme da dor,

a arte existe apenas
como homenagem (pobre, desolada)
àquilo que cada rosto foi
um dia através da paisagem.

José Tolentino Mendonça



Baldios (1999), em A Noite Abre Meus Olhos [poesia reunida], Assírio & Alvim, Lisboa, 2008

sexta-feira, 14 de março de 2025

Antero de Alda - Celestine



CELESTINE

Há quem tome comprimidos para a diabetes, para o coração, para o colesterol... Há também quem tome comprimidos para morrer e quem tome comprimidos para matar. Há ainda quem não tome comprimidos, nem para a diabetes, nem para o coração, nem para o colesterol, nem para morrer ou para matar. Provavelmente, só para sobreviver...

Até que as pedras se tornem mais leves do que a água, como diz António Lobo Antunes. Ou até que uma nova alma húmida seja capaz de nos resgatar de certa solidão existencial.

Enfim, deverei tomar algum comprimido para não morrer?

Antero de Alda


(Antero de Alda - abril 2018)



Antero de Alda (nasceu a 23 de Outubro de 1961 em Sever do Vouga e faleceu a 10 de Maio de 2018 em Amarante) foi um artista português. (Wikipédia)



segunda-feira, 10 de março de 2025

Carlos Drummond de Andrade - Mãos dadas




MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummon de Andrade


Sentimento do Mundo (1940)



sábado, 8 de março de 2025

Maria Gabriela Llansol - “Não há mais sublime sedução…”



Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.

Maria Gabriela Llansol


O começo de um livro é precioso, assírio & alvim (2003)



(Fotografia de Vera Biryukova)



terça-feira, 4 de março de 2025

Alexandre O'Neill - Um Carnaval

 



UM CARNAVAL  

Vem ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças

Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.

Alexandre O'Neill


No Reino da Dinamarca (1951)   



(Fotografia de Hubert Cazals, Carnaval en Portugal, 2017)



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Almada Negreiros - A sesta




A SESTA

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar. Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir. E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos. E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.

Almada Negreiros



(Leo Gestel - An Amorous Pierrot in the Café)




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Joaquim Cardozo - Poema para a nudez de Ítala Nandi

 


POEMA PARA A NUDEZ DE ÍTALA NANDI  

Ítala Nandi despiu-se
Tirou suas roupas desnecessárias
E não conseguiu ficar nua:
Sua bunda, seus seios minúsculos, sua babaca pequenina,
São as mesmas da primeira nudez em que nasceu.

Apenas ficou lisa
Apenas entrou na periferia
De um corpo nu pintado: de Cranach ou de Balduing.
- Nudez de Eva, a primeira mulher.

Ítala Nandi, porque escondeste
Por tanto tempo a todos nós
Tua santa e secreta nudez?
Tua nudez sagrada
Nudez para ser beijada

Com esse nu, tão assim de superfície
Todo o teu esforço no sentido da arte erótica
Onde a platéia e os atores são os mesmos,
Dás apenas o efeito tátil de pouca penetração

Com essa primeira e indígena nudez
Ítala Nandi, é quando te vestes
Que ficas nua

Joaquim Cardozo

(Recife, 1897 - Olinda, 1978)



(© Foto de Mauro De Blanco. A atriz Ítala Nandi aos 16 anos de idade no seu primeiro ensaio fotográfico. Caxias do Sul (RS). Brasil, 1958.)



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Uma estrofe de Jorge de Sena

 



VI

A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

Jorge de Sena


Estrofe do poema "O beco sem saída, ou em resumo..." do livro Exorcismos (1972)





(Fotografia de Angela, 2005)


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Manuel da Fonseca - Quinta




QUINTA

Bem alto foram os gritos e os braços erguidos,
bem amargas as lágrimas choradas.
E secas as lágrimas estalaram as raivas
nas florestas dos braços aflitos

… A Vida lá vai,
mais amada que ontem, mais desejada que nunca!

Manuel da Fonseca



Lido no blogue Voar fora da asa



(Fotografia de Jorge Cardim: O rio, Mértola, 2017) 


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Hilda Hilst - "Que este amor não me cegue nem me siga.”

 



Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça mais pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


Hilda Hilst


(Lido em da luz & da sombra)



(Fotografia de Isadora Picolo)


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Tatiana Faia - antonia

 


antonia

caminhamos pelas montanhas
como se se pudesse regressar do abismo
tu à frente, eu atrás
tu com uma corda às costas
calças curtas, uma camisola de malha
às vezes perdes-te à minha frente no trilho
pelo nevoeiro, o azul
da tua camisola confunde-se
com o cinzento da montanha
e eu chamo o teu nome
um som em perfeita queda
como a água ou a noite descendo
aguçada sobre os penhascos

de repente sei que não é este já
o tempo das revelações
as esquinas que virei em trastevere
tu pensas que é pouco o que resta
e talvez não baste e isto é a sério
eu penso se o pouco que resta
justifica paciência para tanto dano
estas são as pequenas perguntas
e as perguntas certas
os teus lábios fecham-se numa linha
isto é verdade o teu sorriso
vai ficar comigo muito depois
de termos batido a altitude
e regressado aos vales lá em baixo
e voltarmos a ser quem temos sido

mas são perfeitos os círculos que os pássaros
desenham acima dos ciprestes
cujas copas se cobrem agora de neve
e o cheiro do ar e o tilintar do teu cantil
gelado pela neve no bolso da tua mochila
não é bem isto a nossa pequenez
afundando-se na paisagem
os momentos de silêncio mudo
os momentos em que o silêncio
te esgotou e te fez falar demasiado alto
e nunca tão alto que chegasse para conversar

há entre nós duas
o mundo secreto de todos cadernos
e também este verso que agora é teu
gastei muitas folhas e muita tinta
e nenhum espaço que me cabe me conforta
queria ter vivido sem causar dano, antónia
mas até o amor, a alegria, a caneta esquecida num copo
e o papel de parede e a tua tosse enquanto
acendes mais um cigarro e estendes os braços
para abraçar o ar até a memória
do corpo despido e quente
e quieto entre os lençóis
tudo isso abre as suas feridas
pede as suas cicatrizes
um tempo que ultrapasse o tempo
medindo-o com a sua ternura
e com tudo o que se perde
com tudo o que vai e vem e não nos pode gelar
o corpo os dedos movendo-se lentamente
traçando o nome da minha cidade nas tuas costas

até a mais fechada das estações
se abre à tua frente
foste tu quem escreveu
um poema sobre um montanhista
que se perdeu as coisas despontam
até na incerteza e na espera
e na febre e no mais estéril dos tempos
até a erva que o gelo agora fere
com a sua aparência de lânguida lâmina
que um pouco de vento poderia desfazer
como se fossem frágeis cristais
pó como os corpos
o teu perfil, a atenção que olha adiante
e se precipita ansiosa sobre o tempo
até aqui na espera de quase nada, antónia
o teu olhar que cresce e o mundo
que recrudesce à nossa volta

Tatiana Faia


Oxford, 22 de Novembro de 2018



Mais três poemas em Ruido manifesto 


Blog Enfermaria 6: "Um quarto em atenas, poética do acontecer (recensão)", de Vítor Gonçalves 


Tatiana Faia (aeuropafaceaeuropa)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Armindo Mendes de Carvalho - Os /As

 


Os / As

Os dos bilhetes postais
os dos cartões de visita
dos anúncios nos jornais
os das palavras cruzadas
dos retratos pornográficos
do amor em dias certos
do amor em certos dias
os que nos contam a fita
os que só falam dos filhos
e lá vem o retratinho
os que são muito machistas
as do furor uterino
os caçadores de autógrafos
os que sabem sempre a última
os dos parabéns por tudo
dos sentimentos por nada
os que mandam boas-festas
os que estão sempre doentes
os que eles é que sabem
os que não sabem pevide
os que se riem por tudo
os que não riem de nada
os da lágrima na esquina
os que falam no cinema
os que ressonam no dito
os que são sempre os melhores
os nem homens nem mulheres
os que só têm memória
os que perderam a mesma
os da última anedota
os que impingem a receita
e os que fazem dieta
os que nos mandam missivas
e escrevem em grande estilo
os que só falam de si
os que só falam dos outros
os mais isto e mais aquilo

Armindo Mendes de Carvalho


Poemas de ponta e mola (1975)


(Lido no blogue Poesia dos Dias Úteis)


A Página da Educação - “Mendes de Carvalho - uma poesia crítica e satírica”



(Fotografia de Pedro Neves - Basta! Parte 7,  2 de março de 2007)


segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Maria de Lurdes Hortas - Adaga

 



ADAGA
 

Sim
ceifei
e atei em molhos
as horas deste dia.
Minha adaga:
a palavra.

Maria de Lurdes Hortas

Giestas, Pirata, Recife, 1980







(Fotografia de Eduardo Hanazaki - Palavras, Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, São Paulo, SP, 2008)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

David Mourão-Ferreira - Escolha




ESCOLHA

Entre o vento e a navalha escolho o vento
Entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra.
Entre vento e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma

David Mourão-Ferreira




(Fotografia de André Mantelli, Escolhas)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Cassiano Ricardo - Serenata sintética

 



SERENATA SINTÉTICA

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

Cassiano Ricardo

Um dia depois do outro (1947)


Cassiano Ricardo (1894 - 1974) foi um jornalista, poeta e ensaísta brasileiro.

Representante do modernismo de tendências nacionalistas, esteve associado aos grupos Verde-Amarelo e da Anta, foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de cunho social-democrata a estes grupos, tendo, sua obra se transformado até o final, evoluindo formalmente de acordo com as novas tendências dos anos de 1950 e tendo participação no movimento da poesia concreta.



(Fotografia de Vanessa Mendes Argenta)


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

José Tolentino Mendonça - Travessia da infância




TRAVESSIA DA INFÂNCIA

Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito

José Tolentino Mendonça



(Fotografia de Jaime Silva - Lisboa, Bairro do Arco do Cego, 2005)