quinta-feira, 10 de julho de 2025

Isabela Figueiredo - O tio da PIDE

Fotografia de Arrêtez la musique


O TIO DA PIDE

Esta noite não dormi mais que duas horas. Rebolei na cama, procurando posição, queixando-me dos ossos, mas era outra coisa. Era a breve carta, as suas frases bem construídas, as palavras amigáveis que não me largavam.

O meu tio Jota escreveu-me. A minha mãe entregou-me a carta, li-a toda na cozinha, imóvel, olhando para o terraço dos prédios vizinhos; o meu filho chegou da escola, tirou-me a folha das mãos, passou-lhe os olhos por cima, e disse, "não sei por que que é que estás assim. É só uma carta e o homem parece bué fixe".

A última vez que vi o meu tio bué fixe foi há uns bons 25 anos. Fomos encontrá-lo a Sevilha, porque não entrava em Portugal desde o 25 de Abril. Foi um dos mais laboriosos informadores da PIDE. Trabalhava no Governo Civil, quer dizer, tinha lá uma secretária com carimbos, mas o seu emprego principal era ouvir com atenção, procurar significados ocultos e relatar com o máximo de precisão a matéria recebida. Tinha um caderninho no bolso interior do casaco e aproveitava as idas à casa-de-banho para anotar frases ou expressões consideradas relevantes. Pisgou-se no dia da Revolução e nunca mais a pátria o viu. Depois disso telefonava à família inesperadamente, duas vezes por ano, Páscoa e Natal. Seguia-nos o rasto, nunca se percebia como. Sei que depois de o meu pai regressar de Moçambique, chegaram a combinar pelo telefone um dia e hora para nos encontrarmos do outro lado da fronteira.

Tinha visto o meu tio João uma vez na vida, porque fora a Moçambique de visita, era eu muito pequena. Levou-me prendas, passeou-me. Tinha a impressão de me recordar de um belo homem de barba escura todo vestido de branco. O 25 de Abril levou-o para o estrangeiro, onde existiu durante décadas, congeminando contra a democracia, recrutando mercenários para combater nas guerras civis das ex-colónias, traficando armas ou diamantes, e conseguindo financiamento para os movimentos de direita que iam aflorando. Um traste. Um daqueles indivíduos que nunca foi capaz de se livrar das suas piores convicções, defendendo que os homens nascem diferentes, e que é preciso discipliná-los para que não levantem a crista. Há sempre indivíduos como este. Alguém que finge, que procura safar-se.

Quando o conheci em Sevilha, trazia consigo uma amante loura parecida com a Odete Saint-Maurice, com mise cheia de laca, retornada de Angola, que passou o tempo a reclamar de tudo. Era esteticista e fazia depilação brasileira. O meu tio caminhava connosco empurrando-a levemente com o braço enlaçado na cintura e a mão toda aberta sobre a anca redonda. O meu pai perguntou-lhe quando regressava à terra. Podiam comprar um terreno em conjunto. O tio Jota respondeu que o regressaria no dia em que o meu pai voltasse a Moçambique. E o meu pai riu-se, como se isso não lhe passasse pela cabeça. Como se não sonhasse todas as noites em regressar à terra a que os ingratos dos pretos agora chamavam deles.

Nessa ida a Espanha comprámos rebuçados e sucedâneo de chocolate e regressámos comentando que o tio Jota já tinha idade para ter juízo, que era uma vida incerta, insegura, ninguém sabia dele, nem onde nem quando, etc, etc. E que a loira era um coirão. Eu não disse nada, porque eu nunca dizia nada. Aguardava uma brecha no muro. Um momento para escapar.

Quem morreu não devia ressuscitar para nos atormentar as noites. Se o tio Jota estava morto, devia ter continuado. Quer regressar a Portugal?! Está velho?! Então, mas não se está lá tão bem na Europa do norte?! O que me interessa que se sinta velho e pretenda, agora, regressar para junto da família, acarinhar a sobrinha, deixar-lhe o pouco que tem?! Não temos espaço para ele. Não queremos e não podemos. Não o conhecemos. Correr-me parte do seu sangue nas veias não significa coisa alguma. Também me corre nas veias sangue dum cristão novo cujo nome não consigo adivinhar, e dum missionário italiano que fornicou de pé, na sacristia, com o devido fruto, a menina dos Cristovãos, minha trisavó. Quem são, onde estão, que idade têm? Sabemos nós lá. tudo passa. O tempo engole as circunstâncias.

Isabela Figueiredo


Publicado a 21 de abril de 2017 no seu blogue Novo Mundo



segunda-feira, 7 de julho de 2025

Sophia de Mello Breyner Andresen - Data


DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

Sophia de Mello Breyner Andresen





(Fotografia de Camila Baumhak)


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Fernando Assis Pacheco - Lumiar, Lisboa: um melro na rampa da televisão

 



LUMIAR, LISBOA: UM MELRO
NA RAMPA DA TELEVISÃO


Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios
                              (à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol
                                               (do Verão a dar na tromba
como uma pedra
eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste
                                       (de crocodilo ao peito
envoltorio em águas tristes herdadas
             (dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades que estão
                        (para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis
                         (trazidos queimados de África incapaz
por todas as razões expostas de colar suficientemente
                              (à melopeia do verso heróico

um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano
              (tentando a sua vez de ser um fecho aceitável
o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana

Fernando Assis Pacheco


Memórias do contencioso (1980), in A Musa Irregular, Assírio & Alvim, 2006


(Fotografia de Teresa QF)


terça-feira, 1 de julho de 2025

Manuel Alegre - Estou triste




ESTOU TRISTE

Eu tinha grandes coisas para vos dizer
Porém não tenho tempo. Vou-me embora. Deixo-vos
com a vossa tristeza
mergulhada no vinho quieta envilecida.
Minha tristeza é mais pura
não se esconde no vinho não se esconde.
Precisa
de grandes gritos ao ar livre. De
partir à pedrada o copo
onde a vossa tristeza apodrece.
Precisa de correr. Apertar muitas mãos
encher as ruas de muita gente.
Precisa de batalhas
Precisa de cantar.

Manuel Alegre


Dois dados de cinepovero:

"Estou triste" in «Praça da Canção» (1969)
Mário Viegas in «País de Abril» (1974)
Música: José Afonso, "Que amor não me engana" (excerto) in «Venham mais Cinco» (1973).

 

Em depoimento ao diário "i" (26-03-2013, p. 19) Manuel Alegre escreveu: "Chipre, depois da Grécia e, de certo modo, nós próprios, fez-me perceber que esta Europa é uma fraude. Deixou de ser um projecto de paz e liberdade, começa a ser uma ameaça de tipo totalitário, com o objectivo de empobrecer e escravizar os países do Sul. Por isso é conveniente que nos sintamos todos cipriotas. Antes que chegue a nossa vez." Foi este o clic que desencadeou a ideia deste vídeo. Fotografias retiradas da internet. Os clips foram filmados em Lisboa, em 2 de Março de 2013.